Caraíva, de aldeia a vila

Caraíva, de aldeia a vila

publicidade

De volto ao ponto de partida depois de uma temporada nordestina.

Caraíva, na Bahia, é um lugar lindo. Mar e rio ficam lado a lado. Chega-se por água ou por estrada de chão batido. Há cinco anos nem energia elétrica recebia. Fomos visitar, em Caraíva, a aldeia Barra Velha, dos índios pataxó, descendentes da turma que recebeu Cabral e seus companheiros de viagem. Batemos um longo papo com o cacique depois que ele expulsou da sala da sua casa as crianças que, atoladas no sofá, viam um desenho animado numa televisão de tela plana com imagem perfeita. O cacique fala bem: “A coisa está mais civilizada por aqui”, diz. E ri. “Acontece que a gente agora conhece os programas de governo para construção de casa própria e vai atrás. Ninguém mais quer morar em casa velha de palha”, explica. Pergunto pelos costumes. Ele vai contando: “Tem gente que vem aqui e se decepciona: é uma vila, não uma aldeia. O mundo mudou. Fazer o quê?”

Seu cargo é eletivo. Pode ser cassado a qualquer momento pela comunidade. Não pode prometer nem errar:

– O problema é que de tanto conviver com os políticos, pelos nossos interesses, a gente vai aprendendo a mentir ou a fazer promessas com eles – admite e, claro, ri.

Fomos ver o padeiro. Ele foi candidato a vereador pelo PMDB. Precisava de 800 votos. Fez mais de 700. Se todos os índios votassem nele, teria feito mais de mil. Acontece que os índios de dividem e perdem, ensina. Faz oito meses que virou empresário. Vende 300 pães por dia. Teve de reformar a casa, pois a clientela queria um lugar limpo, mais moderno, com boas instalações. Sonha em oferecer produtos típicos da sua cultura, à base de farinha de mandioca, mas ainda não pode se arriscar:

– Eu tenho orgulho de ser índio. Não estamos parados no tempo. Conservamos a cultura dos nossos velhos, sabemos a nossa história, lembramos do que sofremos: em 1951, fomos massacrados pela polícia quando os coronéis tentaram ficar com todas as nossas terras. Hoje, conhecemos os nossos direitos. Tem índio na faculdade. É o progresso.

O padeiro teme que a televisão transforme excessivamente os índios. “Se faltar luz durante três dias, fica todo mundo desesperado”. Os meninos só querem o corte de cabelo do Neymar. Fomos ver o pajé. Ele chegou brincando com a mulher. Ele tem 70 anos. Ela, 60. Baixinha e ágil, jura que anda com o marido nas costas meia hora por dia. Só por divertimento. O pajé sabe muito de ervas medicinais. É um filósofo. Se deixar, fala sozinho durante uma hora. Solta frases provocativas:

– Ela estava morrendo de médico – diz de uma visitante.

Como assim? O pajé sorri. Reflete e responde:

– Morrendo de tomar remédios demais. Morrendo de mal ter visto o médico. Morrendo de querer um efeito imediato do medicamento. Morrendo de não saber se cuidar todo dia.

Mas o pajé também foi ao médico, que lhe mandou cortar sal e gordura. O pajé voltou para casa triste:

– Condenado a comer insosso por um ano – lamenta.

O pajé já se curou. Voltou a filosofar:

– Quem não tem cura é o mundo. É uma loucura. Já não se sabe viver em harmonia com a natureza. Essa é a doença.

Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895