Cem anos de complexidade

Cem anos de complexidade

Edgar Morin completa um século de vida

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Li “As estrelas”, de Edgar Morin, quando eu tinha 21 anos e estudava história e jornalismo. Conheci o autor pessoalmente num 1º de maio. Fui à casa dele, em Paris, entrevistá-lo para o jornal em que eu trabalhava. Michel Maffesoli, meu orientador de doutorado, fizera a ponte. Nessas alturas eu já havia lido outras obras do mestre da complexidade, especialmente “Cultura de massas no século XX” e “O cinema ou o homem imaginário”. Ao entrar no seu apartamento, onde reinava a gata Herminette, ele me perguntou por Dona Beija, personagem de Maitê Proença, cuja novela passava então na televisão francesa.

      Recebi uma aula sobre a interpretação da cultura pelo chamado homem comum. Morin me disse: “Os intelectuais acham que só eles conseguem separar realidade e fantasias, mas não é verdade. Quem vê novelas também sabe onde separar o falso do verdadeiro”. Algo assim. Daí em diante nunca mais perdi o contato com ele, que fez parte da minha banca de doutorado na Sorbonne, como já contei, e foi um dos meus orientadores de pós-doutorado. Li toda a sua vasta obra. Continuo a reler. Traduzi quatro volumes de “O Método”. Ajudei a organizar algumas das suas viagens ao Brasil. Planejamos, ele e eu, de brincadeira, sequestrar Maitê Proença para um almoço. Não foi preciso. Ela o encontro de bom grado. Estive com Morin em Belém do Pará.

      Falo do anedótico para chegar ao pensador. A complexidade teorizada por Edgar Morin destaca a importância do imprevisível, do acaso, do imponderável e do incontrolável na vida humana. Nesta época em que os “dataistas” pretendem controlar todas as variáveis de qualquer fenômeno, Morin me parece ainda mais necessário. Tenho brigado por ele e até arranjado inimigos cordiais, que me puxam o tapete sorrindo, por defender que, por exemplo, no futebol, é impossível, e indesejável, querer dominar todos os passos do jogo. Edgar Morin tem praticado a modéstia como horizonte da ciência. Essa consciência dos limites, dos erros, das limitações, dos autoenganos, das ilusões e dos estragos produzidos pela arrogância da certeza.

      Num passeio de barco nas águas paraenses, enquanto experimentávamos, a energia amazônica luxuriante, Edgar Morin me falou das suas paixões, entre elas por certas ideias de Pascal. Falou do seu princípio hologramático, a parte que está no todo, que está na parte, e do fato de que o contrário de uma verdade profunda pode não ser um erro, mas outra verdade profunda. Contou das suas lutas, do seu apreço quase instintivo pela liberdade e de que como, a cada dia, pensava na relação dialógica entre autonomia e dependência. Fiquei ouvindo e aprendendo. Ventava muito e sentíamos frio. O vento esparramava as nossas vozes, que não passavam de sussurros. Por muito tempo, não pensei nessa conversa. De repente, ela irrompeu em mim como uma chuva.

      As leituras dos textos generosos de Morin me levam a ter quase arrepios diante de certezas dogmáticas em qualquer campo. Tudo que é assertivo, sem a relativização de, ao menos, algum senso de humor, me horroriza. Quando os dogmáticos trovejam as suas verdades, eu volto a um parágrafo de “O Método 3”: “Nossa ciência realizou gigantescos progressos de conhecimento, mas os próprios progressos da ciência mais avançada, a física, aproximam-nos de um desconhecido que desafia os nossos conceitos, nossa lógica, nossa inteligência, e colocam-nos o problema do inacessível ao conhecimento. Nossa razão, que parecia o meio mais seguro de conhecimento, descobre em si uma sombra cega”.

Como sabemos o que sabemos? Qual a extensão do que pensamos? “O que é a razão? É universal? Racional? Não pode transformar-se no seu contrário sem perceber? Não estamos começando a compreender que a crença na universalidade da nossa razão escondia uma mutiladora racionalização ocidentalocêntrica? Não começamos a descobrir que ignoramos, desprezamos, destruímos tesouros de conhecimento em nome da luta contra a ignorância? Não devemos compreender que a nossa Era das Luzes está na Noite e no Nevoeiro? Não devemos questionar tudo o que nos parecia evidente e reconsiderar tudo o que fundava as nossas verdades? Temos uma necessidade vital de situar, refletir, interrogar novamente, ou seja, de conhecer as condições, possibilidades e limites das aptidões a atingir a verdade visada. Como sempre, a questão prévia surge historicamente por último e é na hora derradeira do pensamento ocidental que a resposta — a verdade — se transforma enfim em pergunta”. Parabéns, mestre Morin, por seus cem anos de complexidade.

 


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