Ceninha de família

Ceninha de família

Poema sobre os tempos cívicos

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Minha mãe lavava roupa no tanque de cimento,

Em agosto dava para ouvir os seus dentes,

Em dezembro dava para escutar seu canto,

Ela não tinha rugas, o tanque, rugas e estrias,

O tempo, intervalos, espasmos, aborrecimentos,

Rupturas, solavancos, horas de tensão ou esquecimento,

O inverno, fugas, canções e noites brancas,

Geladas, frias, fotografias, imagens de coleção,

Essas coisas que não cabem na memória do vento.

Poetas faziam versos modernos ou de concreto armado,

O general governava o país sem remorso nem eleição,

Exigindo continência, civismo e bom comportamento,

Essas coisas que pede todo general de plantão.

As meninas usavam minissaias, os meninos, cabelos compridos,

A vida saía nos jornais com cortes e letras garrafais,

Que embebedavam de ilusão e alegria os cidadãos de bem.

Nas bancas o Sol nunca aparecia, nem ainda a Realidade,

Anarquistas tiravam as calças das nuvens em manhãs suaves,

E pintavam de azul, vermelho e amarelo o por do sol,

Que se punha melancolicamente antes da hora do Brasil.

Jovens morriam em cadeias concretas por ideais abstratos,

Segundo diziam os que só morriam por seus capitais.

Velhos ainda vendiam a Jovem Guarda como uma Bossa Nova,

Sentia-se saudade do que não se podia por decreto viver,

Mas se devia respeitar por ato institucional.

Minha avó gemia enquanto lavava os pratos numa bacia,

A tarde era sempre longa e preguiçosa como um gato,

No tempo em que os gatos ainda sorriam altivos

E não desapareciam sem deixar rastros ou pelos.

Estudantes desfilavam marcialmente de passo errado,

Desatentos ao passado, alheios ao presente, país do futuro,

Enquanto sonhavam com rock, utopias e os seios das colegas,

Que preferiam os mais velhos, mas cediam alguns afetos.

Homens surgiam e sumiam sem dizer adeus nem seus nomes,

Mais tarde se saberia que se faziam biografias escritas com sangue,

Notas de rodapé no livro clandestino da oficialidade,

Páginas frias nos dias quentes de uma história obscura.

Meu avô olhava a rua e pensava em morrer por medo da morte,

O seu tempo já era infinito como a vastidão dos campos,

A cidade era um sonho que se sonhava depois de partir.

Eu queria saber o que se passava, mas nada me ocorria,

Passava noites contando estrelas de dedo em riste.

Minha tia ralhava: vai pegar verruga e falta de amor pela pátria.


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