Centenário de Astor Piazzola

Centenário de Astor Piazzola

Uma entrevista com o gênio do bandonion

publicidade

A revolução permanente

Juremir Machado da Silva

Nascido em Mar del Plata, em 11 de março de 1921, Astor Piazzolla passou a infância em Nova Iorque e, aos 11 anos, foi convidado por Carlos Gardel a participar da trilha sonora do filme El dia que me quieras. Iniciou, então, uma vida ligada ao tango. Depois de muitas revoluções que irritaram os argentinos, começou, aos 68 anos, nova fase. Em agosto de 1989, o músico esteve em Porto Alegre e fez três apresentações no Teatro da OSPA, com seu sexteto. Em um domingo, à beira da piscina, concedeu esta entrevista. Piazzolla morreu em 1993.

 

JMS – O senhor é um homem comprometido com os excluídos da sociedade, assim como as raízes do tango de sua inspiração?

 

Astor Piazzolla – Não. Nem penso nisso. Seria ter preconceitos com a música. E não me serve. Tenho uma maneira de ver a música popular argentina, com bastante interesse, mas que é só do ponto de vista musical. O popular me atrai por esse ângulo. Nada mais. Depois, se é tango ou não, é um problema sem importância para mim. Não me agrada manter qualquer apego ou tradição. O artista deve mudar sempre. Este é o meu compromisso.

 

JMS – O senhor declarou apoio ao presidente Carlos Menem. Ele representa algum avanço em relação aos problemas políticos e econômicos da Argentina?

 

Piazzolla – Não é avanço. Representa uma mudança. E uma esperança. A única que têm os argentinos para salvar o país. Necessitamos apoiá-lo. O povo estava fora doo poder. O dever de Menem, agora, é continuar o que estava fazendo e buscar amor para o país. A Argentina precisa de muito amor. E da extinção de fenômenos como o peronismo e o antiperonismo. Temos de obter um argentinismo e nada mais. E olhar para a frente.

 

JMS – Esse apoio não representa uma forte contradição em relação ao seu passado antiperonista?

 

Piazzolla – Não. Menem não é peronista. Ele usou o peronismo para determinados fins, eleitorais, talvez. Mas no seu governo não há um só peronista. Salvo os da CGT -Confederação Geral do Trabalho -, o câncer maior da Argentina. Menem é menemista e trabalha com gente da direita e do centro. São homens liberais e sérios. Isso é positivo.

 

JMS – Enrique Medina, seu compatriota, quando esteve em Porto Alegre, afirmou buscar material para os seus livros na vida boêmia e miserável de Buenos Aires. O senhor foi recolher matéria-prima nos submundos noturnos portenhos?

 

Piazzolla – Não. Não gosto da noite e da boêmia. Levanto às sete horas da manhã todos os dias e deito às 22 horas. A noite não me interessa nenhum pouco. A noite é para os vagabundos, os que não têm nada para fazer, não trabalham e não criam. E para os bêbados e drogados. Não necessito de nada disso. Minhas drogas são a cama e um bom copo de vinho.

 

JMS – Qual a motivação para fazer uma nova revolução em uma trajet6ria musical bem-sucedida?

 

A. P. – A necessidade de mudança. O artista que não muda está morto. Quando um criador se detém, ele deixa de ser um criador. Está acabado. Penso que faz parte da vida artística abraçar as revoluções estéticas. Em determinado momento, pensei que era difícil alcançar o sucesso. Depois, concluí que é muito fácil. Vence-se estudando e trabalhando incansavelmente. Fui a Paris estudar com Nádia Boulanger e percebi que era fundamental estar aberto a alterações da tradição. Não basta, porém, ser bom aluno. É imprescindível o talento. Difícil mesmo, neste mundo, é seguir, sustentar uma carreira e não se deixar invadir pelo acomodamento. Esta é para mim a parte mais tortuosa.

 

JMS – A música de Piazzolla é elitista?

 

A. P. – A pergunta me permite esclarecer muitos pontos. Eu tive problemas na Argentina. Fui chamado de comunista porque sempre disse gostar de tocar para os estudantes sem dinheiro. Não gosto de tocar para os ricos. Os militares afirmaram então que eu era comunista. Não o sou, apenas digo a verdade. Aprecio os jovens. Em uma convenção da moda, em São Paulo, apresentei-me para o jet-set paulista e do Brasil. Foi péssimo. Essa gente não entende nada de música e nem gosta de música. Satisfaz-lhe ter o bolso cheio de dinheiro e perder tempo em farras. No Memorial da América Latina, toquei para mais de duas mil pessoas e foi ótimo. Era o meu público.

 

JMS – Em Porto Alegre, em todo caso, o Teatro da OSPA foi ocupado pela classe média alta da cidade ...

 

A. P. – Não sei. Não posso saber quem são os ricos de Porto Alegre. Sei qual é o meu público, e não é gente conservadora.

 

JMS – Apesar de ser um revolucionário da estética, o senhor é tido como um homem de ideias conservadoras, tendo inclusive apoiado o regime militar argentino. Como se conjuga a paixão pela transformação artística com a postura política imobilista?

 

A. P. .São coisas diferentes. Mesmo assim, a situação permite esclarecimentos. O tão falado apoio que dei à ditadura é na verdade uma adesão momentânea contra a total desorganização da Argentina. Nunca comunguei com desaparecimentos, mortes e corrupção. Como disse, em certo instante, cheguei a ser visto como comunista. Antes, com Perón, tive que ir morar na Europa, pois não havia espaço para a livre criação em casa. Estou, agora, decidido a viver em paz com a minha pátria-mãe.

 

JMS – O senhor acredita em revolução social, a transformação socialista, por exemplo ? Isso faz sentido ?

 

A. P. .Não se faz revolução com pensamentos, flores, poemas ou música, mas sim com fuzis e coragem. Nada mais. Eu não creio em músicas de protesto, de índole socialista ou comunista. Estou em desacordo, além disso, com elas.

 

JMS – Passados tantos anos de discussão sobre o assunto, ainda cabe cobrar algum engajamento da arte? Um artista como o senhor, filho de um país de caudilhos e golpes militares, teve de lutar para não tomar sua produção um discurso político?

 

A. P. – Não se deve falar em qualquer tipo de engajamento. O papel da arte é outro. O compromisso do artista é consigo. Ele tem que ter muita coragem para ser e fazer o que pensa. Desde 1954 que luto contra os tradicionalistas argentinos. Ninguém queria a transformação do tango. Tínhamos de morrer repetindo os dramas dos cornudos e a morte trágica dos filhos. Piazzolla ousou mudar. E ninguém morreu por causa disso. O músico tem que ser sobretudo livre. Isso eu sou. Afora isso, é fundamental que seja nacional para ser internacional. Ter um sentido nacional. Não imitar os americanos ou os ingleses. Aliás, é o que está acontecendo agora no Brasil e na Argentina. Mais lá do que aqui. O rock não é uma música brasileira ou argentina. É inglesa ou norte-americana. E eles a fazem perfeitamente bem, enquanto nós a fazemos perfeitamente mal.

 

JMS – A necessidade de dar uma cor local à música não implica em aderir a um latino-americanismo?

 

A. P. – Precisamos de argentinismos, brasileirismos ou uruguaísmos, nunca de latino-americanismo. A América Latina é outro mundo. É Nicarágua, Cuba, El Salvador, por exemplo, e isso nada tem a ver com a América do Sul. O mundo da América Central é muito mais europeu. .

 

JMS – Qual a principal consequência da passagem de um quinteto para um sexteto, como o senhor preferiu agora?

 

A. P. .Estamos nos afastando outra vez da tradição. Incluí Daniel Binelli, um músico de formação contemporânea, e adaptei minhas composições às novas exigências. O principal é que fazemos música de câmara e não simplesmente tango. É claro que os tradicionalistas portenhos não gostam.

 

JMS – Preocupa-o a união latino-americana para tratar de problemas comuns, como a defesa de um patrimônio hist6rico e cultural?

 

A. P. – Não entendo nada disso. Entendo é de música. Dedico-me integralmente a isso. Essas coisas que vão e vem sem muita estabilidade não me dizem respeito.

 

JMS – É chegado o momento de enterrar a estética modernista e criar uma outra, própria ao final deste século ?

 

A. P. – Não sei. Estamos continuamente em mudança. Os artistas são os responsáveis pelos nomes estranhos que os jornalistas dão às transformações.

 

JMS – Quais as suas outras atividades ? Edgar Allan Poe e Witmann são as suas leituras preferidas mesmo ?

 

A. P. – Leio muito pouco, quase nada. E não tenho preferências claras. Ouço muita música clássica e popular, moderna, americana e brasileira, desde que a qualidade seja boa.

 

JMS – E as influências musicais ?

 

A. P. -Sempre somos filhos de alguém. Eu sofri a influência de vários compositores, mas não possuo seguidores do meu movimento musical. Tenho como raízes o clássico e o contemporâneo. Em meio a tudo, o perfume do tango.

 

JMS – O senhor foi pugilista. Isso tem algum reflexo sobre o estilo vigoroso de tocar?

 

A. P. – Fui pugilista amador, o que não tem importância sobre a maneira como encaro a vida. Sou disposto a lutar até o fim, com muita coragem. Coragem significa enfrentar quem nos ofende. Eu toco e se o público me insulta, eu me bato com ele. Para isso me serviu o pugilismo. Sempre agi assim. Há apenas oito anos que comecei a mudar. Passei a ganhar dinheiro. Antes, tive uma situação econômica ruim. Por isso, luto.

 

JMS – Atualmente, o senhor vive em Punta del Este e em uma fase otimista, após implantar quatro pontes de safenas. Planos?

 

A. P. – Moro em Buenos Aires e em Punta deI Este passo verão. Estou otimista por ser um enamorado do mar, da pesca, inclusive dos tubarões, e do sol. Sinto-me feliz, apaixonado e com inspiração para compor maravilhosamente.

 

JMS – Apesar de ter feito uma revolução no tango argentino, o que para muitos é uma traição à tradição, o senhor homenageará Carlos Gardel com uma ópera ?

 

A. P. – Não se trata de uma homenagem a Carlos Gardel, mas a Astor Piazzolla. Eu quero escrever a ópera para meu prazer. Carlos Gardel é uma história bonita e difícil de abordar por causa dos preconceitos dos tradicionalistas argentinos. Eles esperarão tangos convencionais e não será assim. Apresentarei canções contemporâneas e que nada terão a ver com Gardel cantor.


Setembro de 1989 (O pensamento do fim do século, L&PM)


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895