Chinelinhos de Natal

Chinelinhos de Natal

Crônica de um passado presente

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 Naquela época, eu me lembro bem, as pessoas dormiam cedo mesmo na véspera de Natal. Dormiam na hora de sempre. Não havia luz elétrica. Papai Noel vinha durante a noite graças à iluminação dos olhos das suas renas. A gente deixava os chinelos ou sapatos na porta para receber os presentes. O problema é que nem sempre se tinha chinelo ou sapato. Algumas vezes não chegava presente algum. Papai Noel, explicavam os mais velhos, perdia-se no caminho por falta de luz. Mais tarde, menos encantado, eu desenvolveria outras hipóteses sobre essas ausências.

      Eu era pequeno e tinha muitas dúvidas: onde se alimentavam as renas do Papai Noel? No campo de quem? Quanto se pagava pela alimentação de uma rena? Eu não sabia se rena pastava. Tudo era mistério. Como Papai Noel fazia para atender tantas casas em tão pouco tempo ou na mesma hora? Era um só Papai Noel? Ou eram muitos? Meu avô me explicou que o Papai Noel passava de casa em casa muito rapidamente. Por isso é que se colocava chinelo na porta. Ele ia uma por uma. Mas eu tinha lido que ele entrava pela chaminé nas casas à meia-noite em ponto. Não era lógico.

– Aqui, não – resolveu prontamente meu avô.

– Como não?

– Não tem chaminé.

Era verdade. Pelo cano do fogão é que um velho gordo não ia entrar. Restavam outros problemas a resolver. Quem pagava os presentes que Papai Noel trazia? Aos oito anos de idade, eu me preocupava com coisas assim. Acompanhava minha mãe ao supermercado e via que para cada coisa era preciso um valor correspondente em dinheiro. Nem sempre era possível levar tudo. Não entendia a razão de não poder pagar depois. Uma vez, o caixa falou: “Nada é de graça neste mundo”. Fiquei chocado. Ter de tirar alguma coisa na hora de passar no caixa era considerado uma enorme vergonha. A solução era calcular bem. Nem sempre dava certo.

Os presentes, quando chegavam, podiam ser minúsculos. Ganhei uma Kombi verde tão pequena que cabia dentro da minha mão diminuta. Mas como era linda aquela Kombi. Como eu a amei. Como viajei dentro dela. Quando ganhei outra, marrom, da Brigada Militar, duas vezes maior, dei pulos de alegria. Foi meu melhor presente até então, ainda que meu sonho fosse uma enorme maleta de 007. Eu me imaginava de calça curta indo para e escola com aquela maleta que eu via na vitrine de uma loja de produtos para escritório. Ficava ao lado da lavanderia do Dry Cleaning, que eu jurava ser o nome, escrito no vidro, do dono daquele negócio. Uma rede. Só podia ser muito rico. Todas as lavanderias da cidade eram dele.

Situação inesperada – O pior aconteceu quando eu fiz nove anos, um 23 de dezembro. Deixei minhas havaianas esfoladas na porta. Havia pedido um par novinho. Sentia que Papai Noel não me deixaria na mão. Ou seria no pé? Acordei cedo e corri para fora. No tapetinho amarelo, encontrei apenas um pé de chinelo do meu número. E o outro? Abri o berreiro. Teria Papai Noel, na pressa, esquecido de soltar o outro? Estaria o Bom Velhinho com pouco dinheiro? Entregaria o outro pé só no Natal seguinte?

      Depois de muitas especulações, concluiu-se que o pé direito havia sido roubado. Por que um só? Porque Lobo começou a latir e o ladrão fugiu apavorado. Meu avô fez uma investigação e localizou o principal suspeito. Achei que ia chamar a polícia. Ou que daria uma lição no larápio. Essa palavra era muito usada por meu avô. Todo mundo que não se comportava como ele queria, com extremo rigor moral, era sempre larápio.

– E o Dry Cleaning? – perguntei-lhe uma vez.

– Um baita larápio – respondeu, como se o conhecesse muito.

      Meu avô Breno era esquisitão. Fumava palheiro, bebia cachaça e dava conselhos de velho sábio: “Tudo pode ser feito na vida”, dizia. “Com moderação”, completava. E dava mais um gole, que chamava de talagaço, da garrafa branca com rótulo azul. Não usava copo. Para não sujar, explicava. Abraçado ao meu chinelo órfão, esperei a decisão que ele tomaria. Era um homem justo, de grande retidão moral, como eu saberia mais tarde, quando soubesse o que era mesmo retidão moral.

– Quem foi, vô?

– Foi um guri – respondeu.

– Qual o nome dele?

– Não é importante.

– Que vamos fazer com ele?

      Meu avô ficou em silêncio. Deu uma baforada. Permitiu-se um talagaço extra. Aí meu surpreendeu com uma pergunta em tom irônico:

– Que achas que o Dry Cleaning faria numa situação dessas?

– Por que ele?

– É um nome que te interessa, não?

– Deve ser muito rico e importante – respondi.

      O velho Breno sorriu. Então, sereno, me surpreendeu de vez:

– Vamos atar o Lobo e deixar o chinelo que sobrou na porta.

– Para pegar o ladrão ou para Papai Noel completar a entrega?

– Para o guri poder ter o par completo, meu neto.

– Mas ele roubou meu chinelo, vô?

– Foi por necessidade, menino. Por necessidade.


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