Clássicos do machismo

Clássicos do machismo

Pensadores que não pensaram, salvo Mill

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Consta que Aristóteles, um dos mais finos observadores da antiguidade, achava que os homens têm oito costelas de cada lado. Para ele, as mulheres tinham menos dentes do que os homens. Afirmava ser impossível distinguir a alma das crianças da alma dos animais. Parece que os gregos gostavam mais de meninos que de meninas. Tais observações podem dizer muito sobre o estado da boca das mulheres na Grécia ou sobre as falhas no método de observação do “cientista”. Pelo jeito ele nunca apalpou nem homens nem mulheres. Se acertou muito no atacado, cometeu erros no varejo que fazem rir sem lhe abalar a reputação. Os grandes também erram. Os fãs passam pano para os erros.

Em relação às mulheres é longa a história de subestimação e dominação. Até o ponderado Michel de Montaigne praticava o machismo da sua época: “Seria tempo perdido argumentar de igual modo com as mulheres a fim de evitar que se mostrem ciumentas, pois são tão desconfiadas, frívolas e curiosas que não podemos esperar curá-las pela razão”. Se há passagem em que Montaigne se mostra mais generoso com as mulheres, ele não deixa de vê-las de modo condescendente. Os machos que pensavam o universo e pretendiam tudo esclarecer em sistemas bem amarrados de ideias não se davam o trabalho de compreender com um pouco mais de sofisticação as mulheres. Alguns, por ressentimento. Arthur Schopenhauer (1788-1860) dava-se mal com a mãe.

O capítulo “a metafísica do amor”, que se pode ler em “Dores do mundo”, é um dos mais extraordinários compêndios de esquisitices sobre relacionamentos. Já o “esboço acerca das mulheres” é um manual de misoginia: “O simples aspecto da mulher revela que não é destinada nem aos grandes trabalhos intelectuais, nem aos grandes trabalhos materiais”. A mulher existiria para a maternidade e atingiria a maturidade espiritual aos 18 anos. Depois disso, nada mais. O homem se distingue dos animais pela razão, mas “a razão débil da mulher” não lhe permitiria ver longe, afetada por “uma miopia intelectual. Poucas vezes um homem insultou tanto as mulheres dando-se ares de tudo explicar: “A dissimulação é inata na mulher”. A misoginia atinge o seu ápice nesta passagem: “Foi necessário que a inteligência do homem se achasse obscurecida pelo amor para que chamasse belo a esse sexo de pequena estatura, ombros estreitos, ancas largas e pernas curtas”.

Se o grande pensador é aquele que vê além do seu tempo, Schopenhauer, quanto às mulheres, foi minúsculo. Ele foi buscar amparo em Rousseau: “As mulheres em geral não apreciam arte alguma, não as conhecem e não tem talento nenhum”. Para o rabugento Schopenhauer a mulher era um “ser de cabelos compridos e ideias curtas”. O machismo é uma construção multissecular que contou com penas afiadas e leitores complacentes. Os grandes sistemas filosóficos ruíram. Sobraram algumas boas sacadas e muitas infâmias protegidas como “coisas da época”.

Na contramão – Nietzsche (1844-1900) era mal-amado. A sua coleção de frases machistas é antológica: ”Onde não está em jogo nem o amor nem o ódio, as mulheres são medíocres artistas”; “A mulher foi o segundo erro de Deus”; a "emancipação da mulher, na medida em que esta é exigida e fomentada pelas próprias mulheres (e não apenas por algumas rasas cabeças masculinas), resulta ser, desse modo, um curioso sintoma da crescente debilitação e embotamento dos instintos mais femininos”.

      Todos pensavam assim no século XIX? Não. John Stuart Mill (1806-1873) andava na contramão do machismo dominante. Ele se apaixonou, em 1831, por uma feminista, Harriet Taylor. Ela era casada. Divorciou-se. O marido morreu em 1848. John e Harriet casaram-se em 1851. Ficaram juntos por sete anos. Ela faleceu. Juntos, escreveram sobre a condição da mulher, inclusive sobre violência doméstica. Não havia hierarquia entre eles. Em “A sujeição das mulheres”, Mill comparou a submissão feminina aos homens à escravidão. É uma das primeiras obras a tratar de igualdade de gênero. Embora especialistas afirmem que Mill é o autor do livro, ele defendeu a coautoria de Harriet Taylor:

        “Quando duas pessoas compartilham plenamente seus pensamentos e especulações, quando discutem entre si, na vida cotidiana, todos os assuntos que têm um interesse moral ou intelectual, e os exploram com maior profundidade do que os escritos destinados ao leitor médio normalmente e para facilitar a análise; quando partem dos mesmos princípios e chegam às suas conclusões por caminhos comuns, pouco interessa, do ponto de vista da questão da originalidade, saber qual dos dois segura a pena. Quem contribui menos para a composição pode contribuir mais para o pensamento; os escritos que daí resultam são o produto dos dois tomados em conjunto, e muitas vezes deve ser impossível separar a parte que cada um tem nele respectivamente e afirmar qual pertence a um e qual pertence ao outro. Assim, em sentido amplo, não só durante os nossos anos de vida de casados, mas também durante os muitos anos de cumplicidade que os precederam, todas as minhas publicações foram tanto obras de minha esposa como minhas”. Um livro para envergonhar os pensadores machistas da época. Se Mill pode pensar contra o seu tempo, por que outros não poderiam?


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