Clubismo e racismo: o Gre-Nal da infâmia

Clubismo e racismo: o Gre-Nal da infâmia

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Fiquei no Rio de Janeiro de quinta até domingo. Acompanhei a polêmica em torno do caso do jogador Fabrício. Fui alertado por um leitor gremista. Ele me interpelou dizendo que o jogador colorado havia sido chamado de macaco. Indicou um texto da revista Placar.

– E agora? – perguntou.

Fui ver o vídeo em que um torcedor chamaria Fabrício de macaco. Vi várias vezes. Fiquei em dúvida. Como sou péssimo em leitura labial, não identifiquei o insulto feito. Outras mensagens de gremistas ansiosos chegaram.

– E agora?

Ouvi e li entrevistas do torcedor negando ter falado macaco. Jurou ter dito “ca...raca”. Fui ver novamente o vídeo. Achei mais para macaco do que para “ca...raca” (o insulto, obviamente, começa com ca, mas é outro). Colorados me mandaram mensagens isentando o torcedor.

– Ele já negou – diziam.

Diante das pressões dos dois lados e da negação veemente do torcedor, cogitei duas coisas: 1) uma armação de gremistas fanáticos em busca de absolvição para o Grêmio no caso do goleiro Aranha, aquele em que uma torcedora gremista chamou o santista de macaco (localiza-se algum suposto insulto racial e pressiona-se a imprensa cobrando-lhe uma suposta coerência). 2) Uma manifestação racista que, provada, embora negada pelo torcedor, tem de levar à punição do envolvido e do clube. Fiquei esperando novos dados. Por exemplo, a análise do vídeo por quem entende de leitura labial. Enquanto isso, mais pressão:

– E agora?

Esse agora de gremistas não pretendia me arrancar um arroubo de indignação contra o racismo, mas, pela equiparação entre o caso Aranha e o caso Fabrício, queria absolver o Grêmio. O novo ato teria de servir de desagravo ao tricolor. Algo assim: se os dois são, ninguém é. A absolvição do clube aparece como mais importante do que a condenação do racismo. De parte de colorados, a pressão tinha o mesmo objetivo: proteger o clube, evitar a comparação, impedir a equivalência.

– Não vai nessa. É diferente – diziam.

Gremistas estão enfurecidos por considerar que a reação não está tendo a mesma proporção do caso Aranha. O goleiro santista ouviu os insultos e reagiu. Falou nos microfones das rádios. Registrou queixa na polícia. Um vídeo provou que estava falando a verdade. A moça que o chamou de macaco admitiu o uso do termo, mas não se sente racista. Disse ter falado sem pensar. É possível praticar atos racistas sem ter a sensação de ser racista. A infâmia continua existindo. É possível ser sem saber.

Fabrício não falou nos microfones. Não explicou a sua perda de controle. Não registrou queixa em delegacia. Não sei se ouviu alguém chamá-lo de macaco nem se o termo teria sido usado antes ou depois do seu surto. Se ouviu, deveria ter feito como Aranha. Se fizesse, a repercussão seria a mesma. Se não ouviu, mas a palavra foi dita, continua sendo grave. O vídeo teria aparecido pela primeira vez num site gremista. Em qualquer situação, havendo racismo, a punição se impõe e o repúdio também. Um torcedor negro chamar um jogador negro de macaco é triste, uma espécie de síndrome de Estocolmo: o discriminado assumindo o papel histórico do discriminador. Se ficar provado que isso aconteceu, deve sofrer as consequências. É evidente que existe racismo entre torcedores do Grêmio e do Inter. É evidente que nem todos os gremistas e nem todos os colorados são racistas. A maioria não é. Mas usar o racismo de um para absolver o racismo de outro é empatar o Gre-Nal da infâmia e inverter a importância das coisas. Nesse jogo de fanáticos, o “meu” e o “teu” clube é que mais valem.

Desde o caso Aranha gremistas esquadrinham imagens de torcedores colorados buscando insultos racistas. Não se trata de adesão à luta contra o preconceito, mas de tentar anular por equivalência o acontecido. Colorados certamente vão esquadrinhar imagens de gremistas em todos os jogos do Grêmio para tentar dar o troco. Todos agora combatem o racismo? Ninguém. Só se interessem por suas paixões clubísticas. Para certos gremistas, não houve racismo no caso Aranha, mas apenas uma sacanagem de colorados para desqualificar o Grêmio com ajuda da mídia, possivelmente, na visão deles, uma mídia “vermelha”.

No caso Aranha até o histórico de cantos preconceituosos de certos torcedores, o famoso “macaco imundo”, pesou na percepção global. Depois do caso, o cântico foi abandonado. Ponto positivo. Um avanço.

Quase todos os que me mandaram mensagens tinham fotos de camiseta do Inter ou do Grêmio ou o distintivo do clube no perfil. São militantes. Quando alguém me diz, “meu clube é minha vida”, eu penso: “Que triste!” Como disse alguém, o futebol pode ser a coisa mais importante entre as coisas menos importantes. Para mim, apenas um jogo. Já o racismo, de qualquer cor de clube, é uma questão séria. Quero punição para torcedores e clubes – qualquer clube – em que manifestações racistas sejam constatadas. O racismo do presente não anula o racismo do passado. Nem justifica. Ambos são infames e condenáveis.

Leio que o TJD vai abrir processo contra o Inter. Isso significa que o insulto racial é visto como evidente? A leitura labial por especialistas deve ter confirmado a injúria? Se for assim, punição. Sem afagos. A denúncia estaria baseada no depoimento de um jornalista, que teria ouvido os insultos. Tem peso. O jornalista, porém, garante que os insultos que ouviu não partiram do torcedor do vídeo. Diz que não viu os rostos. Eram brancos ou negros? Ou brancos e negros? Difícil crer que o jornalista usaria a sua condição de colorado para aparecer como herói independente combatendo o racismo do próprio clube.

Ao dizer que os insultos que ouviu não foram do torcedor do vídeo, evita uma acareação. Há quem diga que falar sem provas é irresponsabilidade ou prova de que nada aconteceu. A prova testemunhal, no entanto, existe e tem muito valor.

O torcedor identificado continua negando convictamente: “Sou negro, minha esposa é negra. Se eu tiver um filho um dia ele vai ser negro. Em nenhum momento iria ofender o Fabrício porque seria uma ofensa a mim também. Estou à disposição de qualquer órgão, não fiz nada de errado e vou fazer qualquer esclarecimento necessário”,

Em qualquer contexto, venha de quem vier, chamar um negro de macaco é um ato racista. Diante do racismo e das coisas fundamentais da vida, Grêmio e Inter não me interessam. Um clube de futebol não ocupa o milésimo lugar entre as coisas mais importantes para mim. Já o combate à discriminação está entre as minhas prioridades.

Há torcedores que sonham com o crime perfeito: um episódio que empate o Gre-Nal do racismo e, de quebra, transfira o racismo de brancos para negros, fazendo do racismo Gre-Nal uma briga de negro com negro.

Dizer que pode não ter havido insulto racista, de parte de alguém identificado como colorado, vira clubismo.

Dizer que houve, sem provas, vira revanchismo.

Culpar um negro, sem provas, é uma astúcia do racismo dos brancos.

Isentar um negro, com provas, seria imperdoável.

Há algo de podre nessa história.

Mil perdões se não consigo levar clube de futebol a sério. Já fui gremista. Já fui colorado. Não andaria na rua de camiseta de clube. Sentiria vergonha. Acho mico. É divertido ver um jogo, mas derrotas de uns e outros não me causam alegria nem sofrimento. Sou indiferente. Há muito perdi a fé na religião do futebol. Não condenei Fabrício em momento algum por sua explosão. Escrevi que as dores dos homens me interessam mais do que as instituições e suas hierarquias. Se ele foi vítima de racismo, terá ainda mais a minha solidariedade. Humano.

No caso Aranha, a repercussão e a punição foram justas. É importante que, havendo provas, o caso Fabrício tenha o mesmo desfecho. Não para aliviar o Grêmio, mas para que haja justiça. O racismo no futebol gaúcho é uma tradição. Faz parte dos costumes bárbaros gaudérios.

Basta de infantilismo e de racismo por esporte.

 

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