Como gosto de viver

Como gosto de viver

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Gosto quando me acordas no meio da noite para saber se estou bem. Diante da minha surpresa emitida com um resmungo ou um murmúrio:

– Por quê?

Murmuras:

– Porque sim.

Gosto quando me contas como seremos na velhice, lado a lado, frente a frente, de mãos dadas a cada passo mais lento. Gosto quando lembras do que fomos, de como começamos e esqueces generosamente do que tivemos de passar para chegar aonde estamos. Gosto quando me falas mansamente sobre o muito que nos queremos e de quando me prometes que nunca deixaremos de ser o que sempre fomos e já não somos. Gosto quando caminhamos em silêncio pelas ruas ensolaradas de cidades que foram nossas, onde moramos, amamos e sonhamos em voltar para casa.

Gosto quando nossas brigas, cada vez menos frequentes e mais rápidas, terminam por um sorriso cúmplice ou numa saída bem-humorada:

– Vamos almoçar?

– Eu vou.

– Eu também.

– Então vamos juntos.

Gosto quando nos deixamos ficar ao crepúsculo em nosso pequeno jardim folheando álbuns e memórias ouvindo Elis e sussurrando poemas que nunca serão escritos. Às vezes, não resisto e como um velho amante enviando as mesmas flores a cada data importante repito os versos de Pablo Neruda que te disse em nossa primeira semana: “Gosto quando te calas porque estás como ausente,/e me ouves de longe, minha voz não te toca”. Tu sorris como se me ouvisse pela primeira vez e tua boca me conta coisas profundas sem precisar mover os lábios. Gosto quando me provocas para que recite novamente os mesmos versos em espanhol e cicias como uma noite na Andaluzia: “Me gustas cuando callas porque estás como ausente, y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca”.

Gosto quando dividimos longos silêncios eloquentes e ternos ouvindo o alarido que sobe da rua em frente com seus passantes ou quando nossas mãos se procuram na escuridão do cinema iluminando nossos olhos que se desviam da tela por um segundo correndo o risco de perder o detalhe que dá sentido ao longo filme. Gosto de pensar que mesmo não tendo feito certas coisas podemos imaginar que elas tenham acontecido por termos pensado, cada um do seu lado, cada um no seu tempo, por vezes no mesmo momento, que elas fazem parte do que sentimos e experimentamos ou deveríamos ter feito e experimentado.

Gosto de lembrar que trilhamos um caminho, com seus obstáculos e pedágios, suas margens e paisagens, suas frestas e miragens, suas lendas e imagens, sendo que todo caminho é sempre um caminho de pensamentos, de pactos, de sonhos, de rupturas e de novas alianças contra o tempo e sua passagem. Gosto de recordar que entramos em veredas, estivemos no sertão, descobrimos atalhos, molhamos nossas mãos nas águas límpidas de igarapés e estivemos juntos vendo o por do sol em Jericoacora e o despertar dos elefantes na África do Sul.

Gosto de pensar que somos os mais velhos novos namorados e de saber que nossos silêncios dizem muito sobre o que nunca precisamos gritar. Gosto de nossa vida em comum atravessando as horas, os dias, os meses, os anos, as décadas e os calendários. Gosto de lembrar que estiveste comigo quando eu me senti indo ao chão e também quando pensei que voava e via o mundo do alto. Gosto de recordar que disseste meu nome quando sentiste medo e quando exultaste de alegria. Gosto de perceber que trilhamos um mesmo caminho e que nos fundimos sem deixar de ter nossas singularidades. Gosto de compartilhar contigo nossos mitos, nossas lembranças verdadeiras e minhas memórias imaginárias.

Gosto quando me despertas com firmeza para a realidade da qual tento me esconder ou quando me convidas para sonhar sem medo das ilusões. Gosto quando revisitamos sem dar um passo sequer nem fechar os olhos os lugares que nos marcaram por coisas muito pequenas e belas em Paros, Ouarzazate ou Quelimane. Eu te vejo repentinamente caminhando nas areias de Zalala até molhar os pés nas águas do Índico e entendo com o vento do mar sem necessidade de qualquer explicação que nossa história não tem começo nem fim. Gosto de pensar que fazemos parte de uma crônica que um dia será escrita na sua aldeia por um autor desconhecido para falar da universalidade das histórias de amor particulares, essas histórias tão comuns e tão únicas que iluminam noites aparentemente fadadas ao esquecimento ou coalhadas de estrelas.

Gosto quando fazemos da vida prosaica de todos os dias um pouco de poesia, essa ave, essa pedra, esse fogo de palavras em extinção, e acendemos fagulhas na grande planície do firmamento onde outros só enxergam nuvens cinzentas e sinais para a meteorologia. Gosto quando nos calamos por estarmos tão próximos quanto aqueles que mesmo distantes compartilham um sentimento tão forte como o encantamento.

 

 

 

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