Como viviam os negros farrapos no Rio de Janeiro

Como viviam os negros farrapos no Rio de Janeiro

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Um documento do Arquivo Nacional (IJ6 471), publicado em primeira mão no meu livro História Regional da Infâmia (L&PM), esclarece definitivamente o destino dos negros farrapos enviados ao Rio de Janeiro:



“Instruções para a Comissão encarregada de avaliar os indivíduos que, havendo sido escravos, se acham livres, em consequência dos acontecimentos da Província de São Pedro. A Comissão encarregada de avaliar os indivíduos que, havendo sido escravos, se acham livres, em consequência dos acontecimentos da Província de São Pedro, a fim de serem indenizados seus senhores, observará o seguinte regulamento.

Artigo 1

Reunir-se duas vezes por semana, às tardes, em uma sala do Arsenal de Guerra da Corte.

Artigo 2

Requisitará, por ofícios dirigidos por intermédio do Presidente, ao Comandante das Armas, e ao Inspetor do Arsenal de Marinha da Corte a remessa do número de indivíduos que deverem ser avaliados em cada sessão.

Artigo 3

Presentes estes, será cada um interrogado a respeito de seu nome, naturalidade, estado, profissão anterior à de soldado, nome de seu antigo senhor, possuidor ou usufrutuário e quaisquer outras circunstâncias que sirvam para fazê-lo conhecido.

Artigo 4

Em seguida, será examinado pelo Comissário Cirurgião-Mor, que deverá declarar qual o estado sanitário dos indivíduos e proceder-se-á a avaliação pelos seus avaliadores nomeados pelo Governo.

Artigo 5

Se, conforme o juízo da Comissão e dos avaliadores, achar-se o indivíduo na idade pouco mais ou pouco menos de 16 a 30 anos e não tiver defeito físico, ou algum grave defeito moral, ser-lhe-á dado o valor de 400.000 reis, arbitrando-se menos preço pelos que por alguma circunstância não se acharem nessa casa.

Artigo 6

No caso de não concordarem os dois (?) avaliadores no valor que se deve arbitrar, decidirá a Comissão, tomando o valor médio arbitrado pelos avaliadores.

Artigo 7

De tudo lavrar-se-ão os competentes termos, que serão remetidos à Secretaria de Estado, logo que finalize a avaliação.

Artigo 8

Para o bom desempenho deste serviço fica (?) Comissão autorizada a dirigir-se oficialmente a qualquer autoridade a quem pertencer ministrar quaisquer esclarecimentos que lhe sejam necessários.

Artigo 9

Terminada a avaliação e dispensados os dois avaliadores, procederá a Comissão a examinar as reclamações dos Senhores pela forma seguinte: recebidos os requerimentos das partes, serão numerados pela ordem de apresentação. Estes requerimentos deverão ser designados pela própria parte ou por seu procurador, e neste caso deverá vir junto a procuração (?) atentamente o direito de propriedade que assiste ao reclamante, as circunstâncias em que o escravo fugiu ou foi arrancado seu serviço, sua estada no serviço dos insurgidos, e sua atual existência na Corte por ordem do Governo.

Artigo 10

Caso o escravo tenha sucumbido estando já entregue ao Governo, deverá esta circunstância ser mencionada, e provada competentemente, e neste caso será a avaliação suprida (?) pela justificação judicial de identidade, e a Comissão na presença das provas, e pelo que colher dos documentos, arbritará a indenização que nunca deverá exceder ao valor máximo de 400.000 réis.

Artigo 11

A prova da propriedade poderá ser a certidão da escritura da compra, doação, formal de partilhas ou de qualquer título por onde o reclamante tiver havido o escravo, e outrossim a justificação judicial dada perante o Juízo dos Feitos (?) da Fazenda, com audiência do procurador Fiscal.

Artigo 12

Todas as demais circunstâncias se provarão com atestado de funcionários públicos que em razão de seus ofícios as possam atestar, e também por meio de justificação perante o Juízo dos Feitos (?), quer dadas na Corte, quer na Província de São Pedro, como mais conveniente for à parte reclamante.

Artigo 13

Julgada qualquer reclamação, quer seja atendida, quer por carência de prova desatendida, oficiará a Comissão ao Governo, dando-lhe conta de tudo. No caso de indeferimento, poderá entregar à parte reclamante os seus documentos com certidão de todos os termos e deliberação da Comissão, passando-se recebido no verso do requerimento.

Artigo 14

Concluído o exame de todas as reclamações, remeterá a Comissão ao Governo um relatório minucioso de tudo quanto houver feito, acompanhado de todos os papéis, e documentos que justifiquem suas deliberações, o que feito, ficarão concluídos os seus trabalhos, e não se reunirá mais sem nova ordem do Governo.

Artigo 15

A Comissão fará publicar imediatamente nos Diários da Corte e nas Folhas Públicas do Rio Grande do Sul um anúncio, declarando o dia, hora e lugar de sua reunião, convidando a todos os que se julgarem com direito à indenização a comparecerem por si ou por seus procuradores, e especificando as justificações e provas com que deverão instruir seus requerimentos. Paço (?), em 24 de maio de 1848. Manoel Felisardo de Souza e Mello”.

Era, obviamente, uma comissão de indenização. O importante era preservar o direito de propriedade. O termo “livre” aparecia como uma forma esdrúxula para designar uma situação anômala. Cada proprietário receberia, no máximo, 400 mil réis por um negro. O essencial, porém, estava no Artigo 2: “Requisitará, por ofícios dirigidos por intermédio do Presidente, ao Comandante das Armas, e ao Inspetor do Arsenal de Marinha da Corte a remessa do número de indivíduos que deverem ser avaliados em cada sessão”. Eis o destino dos negros levados do Rio Grande do Sul. Estavam, desde 1845, no Arsenal da Marinha ou a serviço dos quartéis cariocas.

A historiadora Daniella Valandro de Carvalho, num artigo de 2010 intitulado “A gauchice em questão: o 20 de Setembro ao rés-do-chão”, conta que localizou no Arquivo Nacional um documento com uma informação importante sobre os escravos enviados do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro: “Salvador Braga ficou por cerca de dois anos circulando por várias instituições do Império, entre fortalezas, depósitos e hospitais, sem ocupação certa, até fazerem deste ex-soldado negro, um servente de obras. E que Salvador, entre africanos livres e libertos presentes nestas instituições, os incitou, debateu com seus iguais suas situações, e insatisfeito com a vida que levavam, escreveu um abaixo-assinado (em abril de 1847) ao imperador, reivindicando um rumo para suas existências”. Salvador fora um dos lanceiros negros.

Adriana Barreto de Souza relata, citando informações de Thomas Holloway, um elemento que dá sentido ao todo: “Desde 7 de abril de 1831, tornou-se ilegal traficar escravos. Ainda que o tráfico permanecesse ativo, nas poucas vezes em que se resolveu cumprir a lei, a atitude criou um impasse: o que fazer com esses negros não aculturados? Como não podiam ser vendidos nem soltos para viver por conta própria, já que nem mesmo falavam o português, passaram a viver sob a tutela do Estado. Eram empregados em repartições públicas ou por particulares que, no caso, deveriam pagar um aluguel por seus serviços. Eles eram a principal mão de obra utilizada no quartel da guarda policial de permanentes. São várias as solicitações de africanos feitas pelo tenente-coronel Lima ao ministro da Justiça. Com isso, protegia seus guardas do vexame de prestar ‘serviços indignos’. Alguns deles, depois de conhecer os africanos, aproveitavam para contratá-los particularmente” (Souza, 2008, p. 237-8).

Entre os “serviços indignos” do setor de Obras Públicas estava “esvaziar urinóis nas valas ao redor da fonte da carioca”. Caxias havia desenvolvido o método como comandante da polícia militar no Rio de Janeiro conturbado dos anos 1830. Sabia perfeitamente que destino dar aos “negros livres” dos pacificados farrapos. Merda na corte era o que não faltava. Nem guerras no Prata. Outra indicação do destino dos escravos farrapos, entre outros negros, aparece num “Relatório do Ministério da Marinha de 1845”, citado por Robert Conrad em seu magnífico “Os últimos anos da escravidão no Brasil: “Cento e setenta ‘escravos da nação’ foram empregados em 1845 no Arsenal da Marinha do Rio de Janeiro”. Que incrível coincidência. Mesmo os africanos realmente libertos não tinham, segundo o ministro britânico no Rio de Janeiro, James Hudson, também citado por Conrad, “a menor possibilidade de uma autêntica liberdade”.

 

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