Conto: autorretrato

Conto: autorretrato

Um amor em Montparnasse

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      Impasse, em francês, é um beco. Sem saída. Obviamente. Impasse do Astrolábio desembocava na rua de Vaugirard, a mais longa de Paris. Esse detalhe nada acrescenta à história, mas é tão obrigatório quanto dizer “vous” a um francês desconhecido e solene. Vivia-se à sombra da torre de Montparnasse, gigantesco e enigmático edifício de vidro fumê. Da janela do último andar, outrora quarto de empregada, então chamada de doméstica), via-se o apartamento do Senhor Dupont. No inverno, o solitário e octogenário pintor parecia ter a cabeça eternamente coberta pela neve.

      No verão, talvez pintasse os cabelos. Ou seria um efeito da luz? Aos poucos, a árvore do pátio interno, cujos galhos subiam até o ponto mais elevado do prédio, curvava-se até, sem mais nenhuma folha, acabrunhar-se numa pobreza vegetal de fazer chorar. Era tempo de sentir saudades do sol, de ver a noite começar a cair antes das cinco da tarde e de manter a única janela fechada para não perder o calor da placa de metal colada na parede externa de onde emanava uma quentura tímida e sempre insuficiente. Monsieur Dupont pintava do primeiro ao último rastro de luz. Pintava autorretratos. No corredor, sorria com a candura da criança boa que devia ter sido tantas décadas antes numa pequena cidade da sua França profunda.

      Raras vezes falava. Limitava-se a sorrir e a pintar. Os seus quadros mostravam paisagens melancólicas ou eram autorretratos psicologicamente profundos. Às vezes, revelavam um homem sombrio por trás do sorriso generoso. Outras vezes, deixavam vazar uma alma inquieta. Quem teria sido o senhor Dupont na juventude? Por onde teria andado? Ninguém tinha respostas para questões tão simples. Num dos autorretratos, talvez o de acabamento mais demorado, Dupont exibia um olhar feroz e lábios retorcidos. Não parecia ele. Mas, de algum modo, era ele. Uma confissão?

      Quando Monsieur Dupont chegava do supermercado, puxando o seu carrinho branco de duas rodas, sempre alguém corria para ajudá-lo a subir as escadas. Era um homem querido, admirado e silencioso. A pintura dele parecia acompanhar as estações do ano. Era alegre na primavera; quase erótica, no verão; melancólica, no outono; devastadora, no inverno. Em dois anos, foram, ao menos, quatorze autorretratos completos. O simpático senhor Dupont morreu repentinamente. Não foi possível ver a remoção do corpo. O edifício tornou-se mais sombrio. Ficou à janela o seu último e inacabado autorretrato. Um esboço apenas riscado em magras linhas pretas.

Uma notícia – A cada manhã, o autorretrato parecia sorrir para o observador. Nenhum familiar apareceu para tomar posse do apartamento. Se não se soubesse da morte do pintor, seria possível dizer que a qualquer momento retomaria o seu trabalho. Havia tubos de tinta ao alcance da mão. Foi por essa época, alguns meses depois da morte de Dupont, que algo começou a acontecer com o seu autorretrato inacabado. As linhas começaram a enfraquecer. Estaria a luz dos dias mais embaçada pela tristeza das horas? Seriam as lentes do espectador? Era um simples efeito natural? 

      Nessa época, por alguma razão inesperada, surgiram história sobre o passado do pintor. Teria lutado na Segunda Guerra Mundial, resistido na clandestinidade ao invasor nazista, mostrado coragem e bravura. Chegou-se a dizer, embora os fatos não encaixassem nas datas, que teria lutado na Guerra Civil Espanhola ao lado, claro, dos republicanos. Os mais velhos do edifício – num edifício de velhos esquecido da própria idade – sorriam quando falavam dele. Eram sorrisos mais quentes do que a calefação dos “studios” singelos e apertados. Os idosos pareciam lembrar-se repentinamente de coisas importantes sobre Dupont que mereciam ser contadas, mas tão sagradas que deviam restar desconhecidas dos curiosos. O nome dele não passava indiferente. Provocava reações de apreço e alegria.

      O autorretrato definhou junto com a árvore durante um outono mais gelado que o normal. Por fim, a planta entregou-se. A pintura resistiu mais alguns meses. O seu último suspiro aconteceu num começo de fevereiro. O sol não dava as caras havia dezessete dias. O céu estava tão baixo que parecia tocar a cabeça das pessoas. A temperatura andava empacada em um grau negativo. A torre de Montparnasse não projetava mais sombra por falta de luz. A última obra do senhor Dupont apagou-se de vez. Da janela, nada mais se via. O último risco preto sumiu na tela branca deixando um vazio.

      Nesse dia em que a imagem do autorretrato apagou-se de vez, a Senhora Vaillant, como era conhecida, voltou das suas andanças pela cidade com uma carga ainda maior de jornais velhos e revistas. Era acumuladora. Enchia três apartamentos de papel impresso. Estava cabisbaixa. Parou no jardim, sob a árvore raquítica, como que esperando alguém para desabafar.

– Que houve?

– Uma morte?

– Quem morreu?

– O grande amor da vida do Senhor Dupont.

– Quando foi isto?

– Hoje, pela manhã.

     


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