Conto: em silêncio

Conto: em silêncio

Um homem de palavra

publicidade

  Certas histórias se repetem como se fossem mentiras contadas para afugentar o medo da noite, que esconde a morte e o tempo na sua capa de veludo. Ouvi três vezes o que vou contar, em três lugares muitos diferentes e distantes, ao menos mil quilômetros de separação entre eles. A primeira vez eu ainda era criança no sul do mundo. A segunda, homem feito, vivendo no centro do país. A última, faz poucos dias, beirando os 60 anos. Três versões sobre um mesmo fato? Não. Três fatos para um mesmo juramento. Esta é a história de um homem que decidiu nunca mais falar com a esposa, ofendido por não ter sido beijado ao chegar do trabalho, sem se separar dela. Havia filhos para criar. E ele não era homem de se separar.

      Os anos passaram como passam os anos, ora lentos ora rápidos, jamais no ritmo desejado por quem se ocupa de contar os dias. Em certo sentido, o tempo só existe para quem tem pressa ou medo do futuro. Os filhos cresceram levando recados para quem estava sempre ouvindo. Quando cansaram desse teatro, foram embora viver da mesma maneira, ou quase, em outros lugares. Eram três. Um homem e duas mulheres. Os velhos ficaram sós. O rosto dela estava sulcado pelas tristezas dos invernos sempre iguais. O dele, impávido como uma máscara esculpida em madeira, revelava a teimosia que continuava a lhe queimar por dentro, como se a sombra de um vulcão escondesse a lava. A mulher, que nada tinha jurado e por muito tempo esperara a rendição do colosso, falava com o marido, que não respondia. Ela o servia dia e noite, mesa e cama. Quando a queria, ele a tomava sem fazer perguntas. Jamais se descuidou deixando escapar alguma palavra.

      Quando ela chorava, pois lhe acontecia de não conseguir se conter na solidão dos dias de chuva, ele a abraçava ternamente. Quantas vezes ficaram assim até a noite apagar suas sombras vazias? Apertava-a contra o peito sem pronunciar uma sílaba. Nos 36 anos em que viveram assim, nunca ela ameaçou ir embora. Muitas vezes, porém, permitiu-se insultá-lo. Ele ouvia de cabeça baixa. Ao final de cada mês, ia à cidade fazer compras. Bastava vê-lo com sua roupa de domingo para que ela preparasse uma lista com tudo que faltava na casa. Ele voltava sempre com um presente: chocolates, perfume ou flores. Sempre um buquê de rosas vermelhas. Não raro, iam juntos. Não havia convite. Ela simplesmente decidia segui-lo.

      Nessa estranha vida, dançaram tango e jogaram no cassino, viram, sem nunca cansar, o sol nascer e morrer por trás do morro que lhes servia de chapéu, contemplaram as chuvas de inverno, os temporais de verão, as folhas de outono e as cores das primaveras, plantaram e colheram, criaram filhotes de muitos bichos e enterraram tantos animais de estimação, caminharam pelos campos, descansaram sob as copas frondosas das figueiras e perderam seus olhares no horizonte esperando a chuva ou o bom tempo. Certa época, ela adotou um hábito esquisito: lia para ele ao pé do fogo.

Último crepúsculo – Se o tempo passou ou se foram eles que passaram, juntos e separados, é uma questão menor. Certo é que viveram essa morte cotidiana de mãos dadas. Sabe-se que as histórias mais realistas são aquelas que se mostram inverossímeis. Os críticos tomarão essa ressalva como uma justificativa. Danem-se os críticos. Eles também passarão. Veio o tempo do cansaço, dos braços pesados, da perda da memória. O velho esquecia-se de tudo, menos do seu juramento. Ela aprendera a decifrar os seus pensamentos. Quase sempre sabia o que ele desejava e o atendia.

      Ele conseguiu, porém, esconder-lhe que a morte já o rondava. Foi ao médico numa das idas à cidade. Depois de muitos exames, que fazia sem esperança de boas notícias, ficou sabendo que podia sofrer um ataque mortal a qualquer momento. Precisava andar com o remédio ao alcance da mão. Passou a sentar-se ao lado dela para ver cada por do sol como se fosse o último. Não raro, pegava da mão dela e estremecia. E assim anoiteciam em silêncio dia após dia, exceto quando chovia. Quando o seu velho cavalo negro morreu, ele foi até a varanda, onde ela tricotava absorta alguma coisa que nunca terminava, e esperou, como um cão agoniado, que ela percebesse que a esperava. Então ela o seguiu até a cocheira.

      No cair da tarde em que tudo aconteceu, pouco antes do sol morrer, ela estava na varanda. Ele a esperava sentado no banco de madeira que fizera, com uma guarda, para que pudessem esperar a noite sem dor nas costas. A fisgada que sentiu foi tão clara que ele não se conteve. Precisava pedir o remédio, guardado no bolso do casaco, o casaco que sempre deixava no cabideiro do quarto como se quisesse ficar longe dele.

– Velha, preciso...

      Não conseguiu continuar. Ela ouviu aquela voz que conhecia tão bem, aquela voz que não se dirigia a ela desde uma tarde perdida no passado, e sentiu uma estranha emoção. Mas preferiu responder com súbita altivez:

– Agora, não posso.

      Quando o encontrou morto, o sol caía avermelhando o morro.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895