Conto: Exercícios de nostalgia

Conto: Exercícios de nostalgia

Solidão na pandemia

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      Cresce como uma ânsia. Não dá mais para segurar.

      Então você conta.

Mas conta do seu jeito, fingindo lembrar o que esqueceu, lembrando quase só do que inventou, afogando-se na linguagem, lambuzando-se de palavras, sentindo as dores da memória perdida, infectando-se a cada frase, cada retorno ao começo de tudo.

      Por quanto tempo você foi um homem silencioso? Cada palavra lhe saía lentamente. Nunca havia razões suficientes para falar. O silêncio era a sua prece matinal. No entanto, você sorria, abraçava e declarava seus afetos em monossílabos que jorravam da sua boca tão seca, dois, três, até quatro, nunca mais do que isso. Não lhe faltaram crises sobre as quais tivesse tanto o que dizer. Nunca disse. A primeira crise foi de consciência. Olhou a miséria em torno e não encontrou resposta. Depois vieram as paixões, as desilusões, os projetos, as utopias, as ambições e, finalmente, as promessas de fim de ano. Todo ano você prometeu ser melhor e até acreditou na sua sinceridade.

      Quantos livros você leu em busca de uma educação sentimental, de uma iniciação existencial, de algo que fizesse sentido como uma revelação. Quantos rituais procurou para se inserir numa liturgia? Quantos tradições tentou abraçar para pertencer a alguma coisa sólida? Houve o tempo em que você lia Carlos Castañeda e Lobsang Rampa. Os seus inimigos, anos mais tarde, zombariam dizendo que depois de tantas iluminações você acabaria à sombra de Paulo Coelho. Contar sempre foi o seu problema, talvez o seu desejo, quem sabe a sua dor, aquilo que não lhe ocorria, não vinha naturalmente, embora houvesse essa vontade entranhada de contar, de cantar, de vazar em praça pública como uma fonte luminosa, não como um hidrante avariado ou um cano rompido.

      Mais do que tudo, no seu silêncio cordial, você temia a solidão. Durante anos a solidão assumiu diferentes formas e cores: a geada, o vento sibilando na madrugada, o negrume das noites de tempestade, o crepúsculo, sim, cada entardecer foi para você uma melancolia impossível de ser tragada, uma bebida amarga, o primeiro fel da vida. Nascido e criado no subúrbio da capital, você via o centro da cidade como um lugar distante, estranho, perigoso. No seu bairro, aconchegante como um vilarejo, as árvores frondosas ofereciam sombra e frutos para quem tivesse vontade de levantar a mão. Esse pequeno paraíso, de ruas largas e vizinhos sentados em cadeiras nas calçadas nas noites de verão, ficava à margem da grande avenida que cortava a metrópole de fora a fora com sua poesia de concreto e cinza. Você amava esse verde interiorano, esse cinza da cidade grande, essa mistura de cores que se fundiam a cada anoitecer enquanto ônibus lotados tentavam levar uma espécie de migrantes de cada dia de volta para essas casas baixas e alegres debruçadas sobre o tempo passado.

      Sim, você conta que havia felicidade nessas casas de periferia, nesses lares que se degradariam com as transformações sociais e o avanço do asfalto progressista e incontestável. Nessa época, você queria ser cantor de rock, jogador de futebol, famoso, sobretudo famoso, enquanto colecionava soldadinhos de chumbo e paixões não consumadas por meninas esquisitas e com piercing no nariz. Depois, as primeiras fantasias morreram, embora você cantasse e jogasse bem, os estádios eram distantes, faltava dinheiro para chegar todos os dias aos treinos, os soldadinhos de chumbo passaram a figurar como lembranças de uma inocência perdida, tão perdida quanto as próprias lembranças, que você detesta, pois criar é muito mais divertido do que lembrar. Quando tudo ruiu, você descobriu os livros e os filmes, tudo o que não interessava no seu entorno e o tornava mais solitário.

      Então, no limite, arame esticado por uma máquina anacrônica, você conta sobre a segunda grande crise: seguir em frente ou desistir? Os filmes foram ficando cada vez mais complexos, de “Era uma vez no Oeste” a Lars Von Trier, por fim, em maratonas noturnas, as séries mais sombrias da Netflix. As leituras também mudaram radicalmente. Quantas horas você dedicou aos escritos de Raimundo Lúlio? Algo você procurava, alguma coisa que precisava ser suficientemente forte para iluminar o seu caminho e liquidar essa solidão que se erguia a cada entardecer como um vulto gigantesco estendendo sua tristeza sobre as águas crispadas do rio que não era rio. Foi aí, você conta, que surgiram leituras perigosas como as do místico cujo nome não se pode pronunciar e, mesmo depois da separação, você ainda não se atreve. Nesses últimos dias antes do divisor de águas, você submergiu. Da sua boca saíam apenas frases esdrúxulas, quase poéticas de tão áridas.

      Foi por esses dias que você começou a praticar seus “exercícios de nostalgia” sem designar suas óbvias influências nem revelar suas mágoas mais profundas. Quando a dor se tornou permanente, você começou a contar. Toda a infância que lhe brotou de um golpe surgiu reescrita vertiginosamente, golfada de vômito, poema sujo, maldição, rap, viagem na surrealidade cotidiana, temporadas sem iluminação, casas noturnas, caminhadas ao amanhecer, delírios, brigas combinadas à saída de jogos de futebol, uma estranha necessidade de adrenalina, de sangue e de autopunição. Pelo que você se punia? Por se inventar uma biografia, por não saber se arrancar desse mutismo mais doloroso que uma condenação, por ter medo do escuro, por se lembrar nitidamente do que não viveu e se esquecer por completo do que chegou a anotar em cadernos nunca usados em sala de aula, onde você dormia ou sonhava? Ou por ter errado uma punhalada e sofrido um corte no braço esquerdo?

      Viver no subúrbio, nesses arrabaldes povoados por gente vinda de outras periferias, as pequenas e distantes cidades do Interior com suas mitologias, seus personagens e suas melancolias, fez você conhecer homens esquisitos, errantes, meio sonâmbulos, que se diziam pedreiros, jóqueis, padeiros, ginetes, contadores e até rufiões. Quantas vezes amanheceu com algum deles ouvindo histórias que não podiam ser provadas nem desmentidas salvo pela autenticidade que se derramava como uma gosma melecando cada palavra dita com orgulho triste e persistente? Então você se emocionava como se ouvisse uma confissão ou tivesse perdido para sempre um amigo numa luta corporal.

      Num dos seus exercícios você se lembra do terminal de ônibus, dos motoristas e cobradores assoleados com suas camisas azuis de mangas curtas, de um matagal logo depois do final da rua fechada por uma tela, de um açougue de paredes descascadas, da praça com seu telefone de fichas e da escola apinhada de adolescentes afogueados. Você se lembra de tudo o que agora conta como se tivesse urgência de confessar seus desatinos, sabendo que poucos o entenderão, alguns o acharão abstrato, digressivo, dispersivo, necessitando de terapia. Você já não se importa com o que possam dizer, quer apenas revelar o que sempre temeu, mais até mesmo do que o medo de morrer que sentiu ao ser perseguido pelos rivais de sua gangue naquele verão passado na tristeza de um litoral sem magia nem esperança. Sal puro e areia.

      O escritor deve mentir ao máximo para dizer mínimas verdades, admitindo-se que o mundo existe fora da mente de cada um, o que se pode deduzir da morte de alguém. A vida, como se diz, continua. A poesia é sempre concreta como um tanque de lavar roupas ou uma pandorga coleando no céu da Semana Santa. Você, porém, não é escritor nem jamais soltou pandorgas ou se interessou por lavadeiras. Se fosse escritor, para cada lembrança – pois todo autor, disseram-lhe numa conversa de bar, reutiliza alguma coisa do seu passado – colocaria noventa e nove mentiras literárias enfileiradas. Não dá mais para segurar: você conta. E conta como se disso dependesse a sua vida ou o seu lugar no mundo, esse mundinho que lhe escapa como uma criação.

      Você sabe que viveu pouco como se fosse muito, sem ter viajado, sem jamais ter deixado a sua cidade, sempre vagando entre o centro e o subúrbio, entre a “cidade” e o seu canto, colecionando impressões e fantasias por falta do que fazer de mais importante. Por trás de tudo, dessa fachada tão tênue, esse seu rosto de compensado, esse medo, a coisa mais constante da sua existência, de ficar só. Medo da solidão eterna e da solidão terrena. Medo da travessia e da permanência na mesmice da sua vida. Medo do chamamento místico e da sua incapacidade de se entregar. Medo das ruas e de não poder mais voltar a elas. Enfim, medo de ser varrido por um temporal como cisco ou um pássaro. Sim, você conta que se sentiu pássaro em algum momento, quando voava sem sair de casa, mergulhado em livros que lhe abriam as “portas da percepção” ou lhe prometiam uma saída. Você foi a baleia em Moby Dick, o peixe em “O velho e o mar”, o touro em “O sol também se levanta”.

      Não adianta mentir, nem é isso que pretende, você sabe que não foi um grande leitor. Apenas esteve suficientemente desocupado para virar páginas e páginas em longos e cinzentos invernos. Por vezes, levou livros para os bares mais sórdidos e bebeu de graça resumindo as histórias, com a leitura de alguns parágrafos e a invenção de outros, para ladrões, assassinos e vagabundos que nem o nome se dignavam a dizer. Ou que a cada noite se apresentavam com um nome diferente. Tudo isso passou sem um momento de ruptura. Simplesmente ficou para trás. Você passou a usar um fone brancos nos ouvidos e a escutar funk o dia inteiro. Aquilo que se pai lhe deixou bancou a sua preguiça dia a dia. Não era muito. Nem você precisava de muito. Às vezes, temendo um pior nunca designado, você pedia para morrer de alguma doença fulminante.

      Como nada na sua vida foi coerente, você deu uma guinada e descobriu o jazz com um ex-presidiário que encontrou num bordel. Ainda havia bordéis nos lugares por onde você andava. Eram ambientes tristes, mas acolhedores, onde se juntavam pessoas com ricas biografias. O sujeito, estelionatário simpático, perguntou, rindo:

– Como pode, você leu todos esses caras e nunca ouviu Chet Baker?

      Durante algum tempo, só conseguia ler no silêncio absoluto. Outra época, só a música silenciava a sua ansiedade. E as caminhadas. Você conta que compreendeu zanzando como um andarilho que o submundo, mesmo se essa palavra não existia no vocabulário do seu mundo bizarro, era uma espécie de território do subúrbio mesmo quando localizado no centro. O jazz não durou na sua vida, como tudo, salvo o medo da solidão, trocado por ritmos mais violentos e sombrios como um gênero do sul dos Estados Unidos chamado “trap”, que descobriu num canal a cabo. Foi nessa época que você pegou o hábito de murmurar onomatopeias e ganhou fama de louco, mais precisamente o “louco dos fones”. Foi assim que virou o louco do bairro, o “louco da aldeia”, personagem de uma história sem autor que, de vez em quando, lhe apetecia escrever.

      Nunca rabiscou uma linha. Faltava-lhe, talvez, paciência para o duro trabalho de evocação. Era visto caminhando ao longo da interminável avenida cinza ouvindo o ronco dos motores e o silêncio da alma. Era dela, da sua alma, que mais se ocupava em pensamentos. Falar da sua alma para estranhos parecia-lhe um ato obsceno. No fundo, você era pudico e não ficaria nu em praça pública pelo possível alívio de um desabafo. Ouvir era a sua máxima mínima. Escutar para não ter de contar-se. Nas camas por onde passou, sem entusiasmo nem arrependimento, não deixou confissões nem pedidos. Agora, depois do acontecido, você conta para a tela do computador o que houve.

      Não dá mais para segurar, você conta: pegou o vírus certamente na última vez em que foi tomar uma cerveja. Os bares ainda estavam abertos. Sentiu os primeiros sintomas cinco dias depois: tosse, coriza e cansaço. Como não tinha febre, deixou-se ficar esperando a melhora. O termômetro, porém, sinalizou o perigo numa quinta-feira ao cair da tarde. Foi sozinho ao hospital, onde ficou apenas três dias. Com o resultado positivo e receita de paracetamol foi mandado para o isolamento em casa. Não lhe deram cloroquina. Trancado no seu quarto, recolhe pratos de comida deixados na porta. Ninguém se atreve a chegar perto. O tempo não passa. Os livros não o interessam. A música soa como um barulho insuportável. Sente saudades da avenida cinzenta e fuliginosa. Conversa com os amigos ausentes. Fala sozinho. Conta.

      Conta que pensou em ir embora, em começar outra vida muito longe sem nunca se decidir por um lugar qualquer por ter a certeza de que não se separaria da sua origem e de si mesmo. Conta que sonhou com a felicidade sem nunca saber como defini-la nem onde procurá-la. Conta que se apaixonou por uma menina da noite a quem não confessou seu amor por nada a ter a lhe oferecer de seguro. Conta que roubou livros só pelo prazer da transgressão e o que os leu para diminuir o sentimento de culpa. Conta que visitou um hospital psiquiátrico para ver como era e que marcou consulta com um psicanalista, tendo esquecido a data do encontro. Conta que abandonou os estádios de futebol quando se sentiu entediado com os jogos e as brigas e subitamente revoltado com os salários dos jogadores. Conta que viu um negro ser espancado pela polícia e sentiu vergonha por não ter tido coragem de defendê-lo.

      Conta que sempre anulou o voto ou simplesmente não compareceu para cumprir seu dever eleitoral. Conta que flertou com a esquerda e namorou com a direita sempre platonicamente. Conta que se interessou por poesia e pensou em se mudar para o campo onde viveria com seus bichos, seus discos e suas lembranças do que não fora. Conta que sempre quis se sentir normal e nunca soube o que o separava das outras pessoas. Conta que lamenta ter feito mal a estranhos e que sente falta da mãe. Conta que ainda se lembra da primeira namorada, do primeiro beijo, do primeiro filme visto de mãos dadas com ela e de como o futuro lhe surgia límpido e certo a cada manhã a caminho da escola. Conta que não sabe quando tudo começou a mudar nem a razão.

      Amanhece no seu velho bairro de árvores generosas e casas de olhos fechados durante a pandemia. Tem sol. Ainda que seja inverno, sopra uma brisa de verão. A natureza oferece uma compensação aos confinados. Será um lindo dia. Não dá mais para segurar. Você conta. Agora, o essencial. Conta tudo numa live sem espectadores. Conta que encontrou na sua coleção de vinis um LP de Luís Melodia e chorou recordando dessa paixão esquecida e de um show no Porto de Elis. Conta que imaginou ser um garoto do Estácio e acordou um guri da sua comunidade. Conta que morreu todo dia ao não ter forças para viver embora luzes se acendessem nos confins da sua memória afetiva.

      Você conta que pensou em ser um hippie tardio, extremista de alguma causa, discípulo de algum guru. Nada funcionou. Você sabe o que aconteceu: medo. É disso que se trata. Você sempre foi paralisado pelo medo. Não dá mais para segurar, você conta o medo que sente agora:

– Medo de ficar para sempre com o vírus, isolado, confinado.

      Não é possível? A ciência não tem certeza disso. Pouco se sabe de fato sobre o vírus. Tudo é novo, complexo, contraditório. Você tem medo e conta: estar para sempre sozinho pode ser pior do que morrer.


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