Conto: o estranho Eleutério e o cavalo encilhado

Conto: o estranho Eleutério e o cavalo encilhado

Um platino em Paris

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      Conheci Eleutério Guimarães em 1992, em Paris, num café da rua de Vaugirard com a Falguière, junto ao florista que se chamava Pedro e que nunca sorria, embora jamais deixasse de cumprimentar os passantes com a sua voz grave e seca. Muito magro, vestido de preto dos pés à cabeça, Eleutério me recordava alguém de quem ainda me lembrarei. É só uma questão de tempo. Era de Tacuarembó, no Uruguai, para onde pretendia voltar quando tivesse dinheiro para comprar uma chácara e vinte animais, entre os quais dois cavalos. Vivia na capital francesa com a mente voltada para os campos da sua pátria. Falava francês sibilando, morava na rua do Cherche-Midi, num quinto andar sem elevador, de onde descia para o seu cálice de vinho tinto da casa ao final das tardes.

– Gaúcho? – ele perguntou quando pedi uma lata de Orangina.

      Confirmei. Ele explicou que não era pelo meu sotaque nem pela minha escolha pela laranjada gasosa francesa. Era, disse, pelo meu olhar. Confesso que não me detive na sua explicação. Em poucos minutos, éramos velhos amigos. Ele me falava de Enrique Amorim e da sua leitura do clássico “La carreta”, que via como um símbolo da eternidade arquetipal na transição para o mundo industrial na cultura platina. Outro dos assuntos preferidos era uma hermenêutica singular de “Juntacadáveres”, de Juan Carlos Onetti, a quem dizia ter conhecido quando trabalhava como faxineiro na Biblioteca da Prefeitura de Montevidéu. Onetti, dizia, não falava, mastigava literatura. A tese mais cara de Eleutério era simples como o vinho que tomava lentamente:

– Toda literatura sul-americana é triste.

      Para ele a tristeza caracterizava o sul-americano, especialmente o nascido ou crescido no campo. Por tristeza, contudo, não entendia um estado mórbido de paralisação ou sofrimento. Talvez o melhor fosse melancolia. Só que este termo lhe parecia demasiadamente psicanalítico e estava numa fase de ruptura com Freud. Um dia, apareceu com um baralho e me convidou para jogar truco. Ficou perplexo quando lhe disse que não sabia manejar as cartas. Nem tentou me ensinar. Preferia falar do livro que escrevia, embora nunca tenha me mostrado uma página, intitulado “Imaginário pampiano”. Uma única vez me deixou ver a epígrafe anotada num guardanapo: “Quem nasce com o pampa na alma, morre com o pampa no corpo”. Tinha uma veia teatral. Gostava de usar um chapéu preto de copa alta que chamava muito a atenção das pessoas.

– Mi chambergo – dizia orgulhosamente.

      Podia falar horas sobre a evolução dos chapéus na história platina. Conseguiu me arrastar uma noite para comer uma parrillada num restaurante uruguaio da rua de Liancourt. No metro, exultava:

– Vamos comer achuras como estivéssemos em casa – repetia.

      Quando estava de bom humor, com paciência para ouvir, ele me deixava falar sobre Ricardo Guiraldes e até sobre Roberto Arlt. Quando me interrompia, enfastiado de minhas paixões argentinas, perguntava:

– Nunca pensaste em ser Borges?

      Mesmo no forte do inverno andava mal agasalhado, com um esquálido Burma preto sobre a camisa preta. Na rua, vestia um “manteau” preto que não fazia face ao vento gelado. Nessas ocasiões, ficava nostálgico:

– O que nos marca é o vento. Vi no teu rosto, no primeiro dia, a nossa maneira de franzir os olhos para enfrentar a ventania. No meu povoado o vento é de mármore. Lembro de cada geada e de cada assobio do vento.

      Não se expandia sobre as suas atividades na França. Afirmava que estava em Paris para terminar o seu livro em paz, com o distanciamento e a solidão necessários à reflexão e ao resgate dos sentimentos:

– Só escreve bem quem sente saudades – ensinava.

      Numa vez em que pediu uma garrafa de vinho em vez do seu contido cálice habitual, deixou escapar uma confissão sobre a qual não se deu o trabalho de prestar os necessários e esperados esclarecimentos:

– Deixei o cavalo passar encilhado duas vezes e não montei.

      Não foram poucas as minhas tentativas para decifrar os seus mistérios. Quando eu o pressionava abertamente, ele enveredava por digressões metafísicas sobre liberdade de escolha, acaso e destino:

– Nunca soube de alguém para quem o cavalo encilhado tenha passado pela terceira vez. Não há qualquer obra literária ou filosófica sobre isso.

      Gostava dele. Era um homem afável, saudoso e com uma prosa poética que não chegava a pesar como um pastiche ou como má poesia.

– Hoje estás com o pampa nos olhos – ele me dizia vez ou outra.

      Então me fitava como se quisesse mergulhar no meu olhar para emergir no Uruguai. Até que não resisti e lhe perguntei entediado:

– Por que não voltas para o teu lugar?

– Voltar? Como assim?

– O que te impede?

– Como voltar para a minha infância?

      Não pensei naquele momento que eu viria a sofrer do mesmo mal. A última vez que vi Eleutério Guimarães foi numa quinta-feira chuvosa de novembro. Estava feliz. Falou sobre o andamento do seu livro. Quando nos despedimos, teve de segurar o “chambergo” com a mão esquerda. Desapareceu dobrado pelo vento na esquina tríplice das nossas ruas. Nunca mais tive notícias dele. Não encontrei seu nome em Tacuarembó.


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