Conto: por quem der mais

Conto: por quem der mais

Nos tempos da escravidão

publicidade

Contava-se que Damião havia deixado sua terra natal acreditando numa vida melhor, a vida que sua família já não tinha por causa dos conflitos que se alastravam na região, disputas que se enredavam em parentescos, obrigações, dívidas e lealdades, pois naquela época, onde ele vivia, famílias também sonhavam com dias melhores e faziam escolhas que valiam com pequenas apostas. Contava-se também que ele fora contratado para carregar marfim da sua aldeia até o porto de Quelimane, de onde partiam escravos para o Novo Mundo, esse mundo tão novo que ninguém conseguia imaginar, muito menos desejar, embora dele se falasse por ouvir dizer, histórias contadas por homens que apareciam e desapareciam armados e assustadores, inclusive homens brancos falando línguas incompreensíveis. Diziam que ele ficara deslumbrado ao ver o rio dos Bons Sinais, na sua grandeza triste, e que nesse dia o céu estava tão claro que o azul parecia tragar as pessoas como um precipício no ar. Sabia-se que ele fora obrigado a andar por quase um mês, percorrendo centenas de quilômetros, talvez mais de mil, até ver o rio aproximando-se do mar como uma ilusão.

      A lembrança dessa longa marcha seria sua companheira em cada dia da sua vida até o momento em que tomou a decisão mais difícil de uma existência que sempre lhe escapava como a curva dos rios da sua infância. Contava-se, muitos anos depois, em rodas de conversas sussurradas, em noites quentes junto a Baía da Guanabara, que ele jamais havia aceitado o destino, o ponto de ruptura, o momento em que fora vendido junto com o marfim e embarcado à força para nunca mais voltar à sua aldeia nos confins de Moçambique. Garantiam que na viagem, na terrível e longa travessia, ele pedira pela mãe como uma criança abandonada, mas demonstrara uma coragem inútil tentando lutar com seus sequestradores, tendo sido chicoteado até sangrar. Falava-se do vermelho intenso do sangue nas suas costas negras e belas como a África que ele nunca mais veria, salvo nos seus sonhos e delírios.

Contava-se, antes e depois de tudo que aconteceu, como se narrar mudasse os fatos, que Damião queimava de saudades do seu lugar, que tinha a África no coração, como se não pudesse se libertar de um passado obsessivo, e que nem os filhos o faziam parar de sonhar com um retorno impossível. Dizia-se que no dia 18 de fevereiro de 1854, essa data que ficaria marcada na mente de todos, como se o calendário estivesse sempre afixado face aos olhos de cada um, Damião ouviu o seu dono, o velho e empertigado oficial de gabinete de um diplomata, ler no jornal uma notícia sobre um decreto, diziam o número do decreto, como se isso tornasse a tristeza ainda mais triste e oficial, decreto 1.331. Descrevia-se o tom de voz de velho leitor, exagerava-se, talvez, certamente, multiplicavam-se as vozes, já não era um homem que lia a notícia, eram muitos homens, todos nobres, todos ricos, todos empertigados, todos de rostos emaciados, como se a pele se escamasse durante a leitura, todos de barbas brancas e cartola, todos senhores de muitos escravos e tementes a Deus.

Aqueles que contavam o que contavam pareciam cumprir um ritual, de lembrar, de passar de geração em geração aquela lembrança feita de dor e espanto, ritual de resgatar a história de um homem, aquele homem, o negro Damião, aquele que não esquecia o passado, não amava o futuro, não vivia no presente, não se conformava, não se libertava, diziam alguns, sim, alguns brancos, aquele que ouvira o que não devia e enlouquecera: “Artigo 69: não serão admitidos à matrícula, nem poderão frequentar as escolas: os meninos que padecerem moléstias contagiosa; os que não tiverem sido vacinados; os escravos”.

Sabia-se que ele ouvia contrariado as leituras de notícias sobre leilões de escravos e fugas de negros, que se mordia, entonava, esbravejava, saía porta fora debulhando as palavras como se fosse livre para ter arroubos: “acha-se preso na cadeia desta cidade um preto que diz chamar-se João Crioulo e pertencer a certo João Bunda, de Sorocaba ou arredores, de quem teria fugido por não aguentar os maus tratos, mas deve ter sido por ser preguiçoso a considerar os sinais de castigo nas costas, medindo altura regular, fino de corpo, com falta de dois dentes na frente e sem um dedo da mão direita”. Contava-se que ele fechava os olhos quando ouvia coisas assim, “este juízo recebe propostas em cartas fechadas, selada e assinadas para serem abertas em 8 de agosto em audiência, a fim de serem arrematados por quem mais der, os escravos abaixo mencionados”. Repetia “por quem mais der” como se não pudesse parar de falar, doentio, insano, assustador, “Martin, cor preta, de 56 anos de idade, casado com a escrava Isabel, africano, de trabalho pesado, pedreiro, avaliado por 1:500$000”, por quem der mais, “João, cor preta, de 51 anos de idade, africano, casado com a escrava Alexandrina, avaliado por 100$000)”.

Caminhava pelas praias, deixando para trás as casas aglomeradas, vilarejos com pretensões de cidade, rumando sempre para o sul, sempre para mais longe, contemplando o mar encapelado, orientando-se pelos morros, sentindo a melancolia dos desterrados, mastigando as palavras, transtornado com os preços, como podia esse João, que desconhecia, valer tão menos do que o outro, de onde vinha essa avaliação que marcava homens com preços tão vis, esses preços que só tomava conhecimento pela voz dos outros, dos homens que sabiam ler, o que lhe era negado, mais do que negado, proibido, interditado aos seus filhos com a negra Mariana, escrava, como ele, cujo preço poderia a qualquer momento aparecer num jornal para que fosse comprado por quem der mais, avaliada por... Por quanto? E ele mesmo por quanto seria avaliado se o dono resolvesse vendê-lo ou tivesse de fazer dinheiro com ele para pagar as dívidas que dizia não mais controlar? Conta-se que ele odiava os homens com os seus jornais, os senhores pomposos passando os olhos em anúncios, “aluga-se um sobrado na rua da Palma, n. 4”, tudo bem, tudo bem, mas nunca estava tudo pois, pois outras ofertas lhe pareciam infames, “aluga-se uma mulatinha de 14 anos, própria para todo serviço doméstico e aluga-se também uma casa situada na rua dos Afogados, n. 84”, assim como se “vende um touro gordo e próprio para tirar excelente raça por preço módico”. Como podia ser desse jeito? O que ele podia fazer por si?

Então, ele, o negro Damião, que antes tinha outro nome, um belo nome africano que só pronunciava para os seus, na mais densa intimidade dos seus rituais, ele que sofrera o impossível, dias e dias caminhando com a carga de marfim, sentindo fome, cansaço, sede, sofrendo castigos, ele que via o mar em certas tardes nebulosas e chorava como havia chorado na travessia dantesca, ele, o escravo melancólico decidiu que precisava fazer alguma coisa, manifestar sua rejeição a essa lei que impediria seus cinco filhos, três meninos e duas mulheres, de aprenderem a ler e a escrever, o único caminho, segundo lhe ensinara um velho negro, liberto depois de décadas de cativeiro, para alguma liberdade ou para a sonhada libertação.

Numa segunda-feira, com o sol a pino, o sol que o levava a sentir a África queimando dentro de si, Damião saiu de casa preparado para fazer o que mudaria para sempre a sua vida de escravo, uma vida que só se tornava vida de fato nos braços da sua mulher, no amor dos seus filhos, nos sonhos com a sua aldeia. Contava-se que, no caminho, ele parecia compenetrado, como se estivesse em outro lugar, transtornado, embora sob controle, aparente controle, como se viajasse no tempo, erguendo a cabeça para se perder na imensidão azul profunda do céu, aspirando o ar como se precisasse inspirar profundamente para sobreviver ou se manter focado, como se também necessitasse desviar o olhar de outros negros, que, a exemplo dele no dia a dia, carregavam barris de excrementos humanos para jogar no mar e, com a pele ulcerada por listras brancas, eram chamados de tigrada e sentiam-se inchados de horror e de humilhação. Contava-se, muito tempos depois, que parte daqueles negros, vindos de províncias como a do Rio Grande de São Pedro, entregues pelos rebeldes derrotados, teriam se tornado “voluntários da pátria” na Guerra do Paraguai, a mais cruel das guerras, para onde brancos aquinhoados puderam, por lei, enviar substitutos dispostos a correr o risco de morrer em nome do sonho distante da liberdade, essa obsessão que sempre fez viver.

Era um negro alto, de musculatura desenhada, braços longos torneados, fronte altiva, queixo proeminente, olhos de aço, mãos grandiosas, um negro imenso na cidade tórrida, marchando com seus badulaques, na cabeça um canjirão, que não era de fezes. E assim ele andou por uma légua, cada passo dado era uma pesada operação de deslocamento e ruminação. A figura imensa parecia se fazer menos notar pela imponência do seu físico do que pela gravidade do seu semblante. Ele se lembrava talvez da vegetação queimada pelos caçadores de escravos para obrigar os moradores e saírem das suas aldeias na sua terra natal, pensava, quem sabe, nos seus irmãos que nunca mais veria, em como gostava do Brasil sem poder amar a terra da sua escravidão, avançava sob o peso dessa memória que o fustigava mais do que os açoites que recebia por ser rebelde e inconformado.

Contava-se que quando ele chegou diante da escola, uma modesta casa de madeira caiada, os alunos descansavam à sombra de uma frondosa mangueira. Então ele teria depositado o canjirão no chão. Mandou que todos se fossem. Foi uma ordem seca, sem ódio, sem rancor, firme, com uma voz solene que deve ter parecido estranha a ele mesmo. O professor veio até ele. Era um homem raquítico. Contava-se, muito anos depois, que ele teria dito ao mestre que partisse, que não lhe queria mal, que sabia da sua bondade, que lhe agradecia por ter começado a ensinar as letras para os seus meninos e que não tomasse para si o que ele ia fazer e fez. Sim, fez. O professor teria perguntado antes de ser escorraçado o que havia no canjirão e recebido como resposta lacônica, óleo de baleia, tendo surgido nos olhos do velho um lampejo de horror, enquanto Damião sumia por trás da casa e voltava com uma tocha. A escola ardeu como uma vela.

– Para que serve uma escola que não pode ensinar a todos?

Contava-se à boca pequena que Damião teria dito isso ao professor antes de agir. Dizia-se também que havia ficado contemplando as chamas, à espera dos que viriam buscá-lo, e que teria anunciado a sua disposição de queimar as 26 escolas primárias da Corte, tantos as masculinas como as femininas, nos dias seguintes. Contava-se que ele repetia sem parar uma espécie de ladainha: “Artigo 69: não serão admitidos à matrícula, nem poderão frequentar as escolas: os meninos que padecerem moléstias contagiosa; os que não tiverem sido vacinados; os escravos”. Por suas ameaças, teria sido executado. Um homem teria morrido carbonizado dentro da escola, um escravo. As dúvidas sobre sua história começaram em seguida. Não seria possível queimar um prédio com tanta facilidade, muito menos com óleo de baleia, sem contar que as escolas seriam prédio enormes, nas praças, lembrando palacetes e que não se perderia uma boa peça, um negro viçoso, executando-o por tão pouco. Nunca se encontraram registros do seu processo, a imprensa nada falou, não repercutiu.

 Aplicou-se o artigo 192 do Código Criminal: “Matar alguém com qualquer das circunstâncias agravantes mencionadas no artigo dezesseis, números dois, sete, dez, onze, doze, treze, quatorze e dezessete. Penas – de morte no grau máximo; galés perpétuas no médio; e de prisão com trabalho por vinte anos no mínimo”. Agravantes eram envenenamento, inundação e incêndio. Seria o fogo libertador? Um missionário explicou a parte técnica de uma execução: “No Brasil não se adota o cadafalso de alçapão. A forca ergue-se sobre três moirões, em forma triangular. A ela se sobe por uma escada e, quando a corda já está ajustada ao pescoço do condenado, este é içado pelo carrasco que, para abreviar a morte, se pendura nos ombros da vítima”.

Contava-se que antes de morrer, um mês depois, num momento extraordinário de celeridade da justiça, que, contudo, espreguiçava-se em berço esplêndido, a baía da Guanabara, balbuciou com seu ar soberano e nostálgico: “Por quem der mais”. Contava-se também que brancos espalhavam, depois disso, sem revogar a lei que negros odiavam escolas e queriam destruí-las pelo fogo. Por caminhos estranhos, secretos, a história desse homem singular, nunca parou de ser contada. Ainda pode ser ouvida, dizem, em encontros aos quais só têm acesso aqueles que descendem dos embarcados para o Novo Mundo no mesmo navio que trouxe Damião, o inconformado, o melancólico, aquele que aprendera que seus filhos precisavam aprender a ler e a escrever para alcançar a liberdade. Antes de morrer, viu de longe o mar.

 

 


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895