Cotas no serviço público e racismo dissimulado

Cotas no serviço público e racismo dissimulado

publicidade



Domingo de sol é bom dia para um papo-cabeça.

Se doer, tome-se uma caipirinha para aliviar.

A presidente Dilma Rousseff pretende lançar em novembro um projeto de cotas para negros no serviço público. Faz muito bem. O Brasil é um país racista que adora pensar que não o é. O racismo inercial do país só desparecerá na base do choque na percepção individual por meio de políticas públicas musculosas. A resistência a esse tipo de procedimento vem de dois grupos: os universalistas e os relativistas. É um paradoxo. Os universalistas são aqueles seres que, em nome da abstração racional, asseguram que só o mérito intelectual deve prevalecer. Fazem de conta que o mérito intelectual não é resultado também das condições de preparação para uma disputa. Para quem ninguém seja privilegiado numa competição, pela introdução de fatores corretivos, privilegiam os que saem na frente pelas melhores condições de preparação. Apostam no corredor que treinou, comeu e usou todos as vitaminas existentes contra o que não pôde se preparar e, por isso, terá que perder mesmo.

Os universalistas explicam que a saída é dar condições de preparação a todos. Como isso não é feito, a vitória fica com os de sempre. O interessante é que, em geral, os universalistas estão na parte da cima da tabela, aquela em que, tendo condições de preparação, os competidores ganham os confrontos. Os relativistas, em princípio, deveriam se opor aos universalistas. Afinal, bons alunos de antropologia, defendem as diferenças e aceitam as particularidades. Acontece que um efeito perverso do relativismo impede o julgamento do passado. É o famoso e simplório “não se pode julgar o passado pelos valores do presente”. Nenhum mecanismo de absolvição da infâmia pretérita é tão poderoso e ignominioso como esse. Pode-se elogiar o passado com os valores do presente, mas não criticá-lo. Nessa lógica, não é lícito condenar as posturas escravistas dos nossos antepassados. Afinal:

– Eram os valores da época.

A escravidão deixa de ser uma mancha condenável.

Pura enrolação.

Na época, o século XIX, no Brasil, ou só no Rio Grande do Sul, havia dois tipos de pessoas que destoavam dos valores da época, que não os aceitavam, que os invalidavam como valor absoluto: os antiescravistas, que sempre existiram, e os escravos.

Sim, os escravos sempre souberam do horror a que estavam submetidos. Sempre souberam que aquilo era inaceitável, horrendo, infame. Sim, negros também chegaram a ter escravos no Brasil. Esse é o tipo do argumento estúpido e racista que tenta transformar a perversão do sistema em sistema total de perversão normalizada. Na desesperada tentativa de bloquear as cotas e de evitar que o Brasil salde sua dívida histórica com os negros, relativistas e universalistas, por corporativismo, racismo ou maldade, agarram-se ao falso universal como expressão particular dos seus interesses.

Curiosamente muito dos que negam compensações por  meio de cotas vivem pedindo compensações para seus negócios sempre que se sentem em desvantagem nalguma disputa econômica na parte de cima da tabela. Como dizia o sociólogo Pierre Bourdieu, tudo é campo. E campo é espaço estruturado, de conflito, com dominantes e dominados. O Brasil está vivendo, com acertos e erros, lentamente, o seu momento de transição em relação ao passado escravista e racista, pelas cotas, assim com em relação ao passado ditatorial recente, pela Comissão da Verdade, e, por fim, em relação à corrupção e ao caciquismo na política, com o julgamento do mensalão pelo STF. Não deixa de ser emblemático, embora meramente simbólico, que o condutor, neste último caso, do processo de releitura de nossas infâmias seja o ministro Joaquim Barbosa, um negro. Essa página terá de se completar, para desespero dos que só pensam ideologicamente, no sentido vulgar dessa palavra, com o julgamento do mensalão mineiro. A mídia, que sempre infantiliza os acontecimentos capitais, já reduziu tudo a heróis e vilões. Esse é um procedimento novelesco simplista. Não há heróis nem vilões. Há jogo de força e transfiguração. Ampliação do campo da luta.

Estranho mesmo é que os admiradores de Joaquim Barbosa no julgamento do mensalão sejam seus adversários nas cotas e vice-versa. Barbosa não mudou. Cotas e mensalão integram um mesmo movimento. Se mantiver a sua coerência, o Brasil continuará mudando. E ele será odiado e amado alternadamente. As mudanças, contudo, não dependem dele. Ultrapassam-no. As cotas expressam a mudança pós-ditadura que o Brasil não pode mais frear. São o exemplo mais contundente de um novo imaginário. Como tal, devem ser provisórias. De repente, o país resolve atacar o mal pela raiz e dar condições reais de preparação a todos. Antes das cotas, essa ideia nunca passou de enrolação, de argumento para iludir incautos.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895