Crítica da razão subjetiva

Crítica da razão subjetiva

ensaio sobre os limites da percepção individual

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      Atribui-se ao positivismo, embora essa percepção existisse antes de Auguste Comte, a ideia de que haveria fatos externos ao olhar do observador e que como tal poderiam ser descritos. Instalou-se aos poucos a visão oposta: tudo depende do ponto de vista de quem observa ou conta a história. Será? A esfericidade da Terra depende do ponto de vista do observador ou é uma evidência demonstrável que vale para todos? Anedotas podem ajudar a refletir sobre problemas complexos. Conta-se que o alemão Karl-Otto Apel e o francês Jacques Derrida teriam tido uma discussão filosófica de altíssimo nível. Derrida teria sustentado que a comunicação é impossível, pois cada um recebe do seu jeito o que é dito. A mensagem recebida nunca seria exatamente igual à emitida. O diálogo entre os dois gigantes teria sido hilariante.

– Insisto, a comunicação é impossível – teria repetido Derrida.

– Concordo – teria sido a resposta fulminante de Apel.

      Silêncio sepulcral na sala. Depois de alguns segundos, um riso. Em seguida, muitas risadas. Moral da história: mesmo os intelectuais podem demorar para compreender uma piada. Conta-se também que dois relativistas conversavam à beira do mar. Um deles acabou por dizer:

– Tudo na vida depende do ponto de vista de cada um.

– Esse é exatamente o meu ponto de vista – teria respondido o outro.

      O ponto de vista tornou-se uma questão de singularidade indiscutível para não ferir o ego de quem quer que seja. A bola vista pelos 22 jogadores de uma partida de futebol não pode ser a mesma para todos. Possivelmente alguns nem a vejam como redonda. No capítulo das piadas – quando se começa não se para mais –, existe aquela de um congresso de epistemologia. Um jovem pensador teria sido categórico:

– Não existe verdade.

– Se for verdade, caro rapaz, é o que lhe permite mentir em público – teria respondido um velho mestre depois de um sobressalto.

      Noutra versão, supostamente mais elaborada, o jovem pensador afoito teria sido paradoxalmente mais cauteloso e até repetitivo:

– Não existe a verdade – sublinhando o “a”.

– Isso é a verdade?

– Veja bem...

      A subjetividade tornou-se o bem supremo pelo qual existiria um universo para cada um. Locke afirmava que as ideias simples, “os materiais de todo o nosso conhecimento, são sugeridas ou fornecidas à mente” por dois caminhos exclusivos: “sensação e reflexão”. Faz mais de dois mil anos que pessoas se empregam em discussões desse tipo. É um excelente passatempo. Surgem fórmulas: o objetivismo é a doença senil da objetividade necessária. O subjetivismo é a doença infantil do pensamento egocêntrico. Há quem, por medo do relativismo subjetivista, declare verdadeiro e universal o que é duvidoso e local. Há também quem por amor à diversidade considere subjetivo o que se revela idêntico para todos. Por exemplo, o fato de que todos morrem.

Confronto de ideias – Um juiz e um jornalista teriam tido um encontro – ou desencontro – muito instrutivo. O juiz foi logo cobrando:

– O senhor não tem sido imparcial nos seus textos.

– A imparcialidade é um mito – teria respondido o jornalista.

– Então por que o senhor me cobra imparcialidade a cada linha?

      Os entrechoques são tantos que resultam em situações aparentemente improváveis: um romancista, um historiador e um jornalista conversavam num bar (era no tempo do presencial).

– O romance histórico é sempre falso – disse o historiador.

– As narrativas da história são sempre ficções – rebateu o escritor.

– A história não mente – retrucou o historiador.

– Só a ficção diz as verdades mais profundas – assegurou o escritor.

– E o jornalismo nisso tudo? – questionou o repórter.

– Deturpa a realidade – disseram em uníssono escritor e historiador.

      Parece que surgiu uma nova (velha) teoria em uma universidade da costa oeste dos Estados Unidos, a de que a realidade existe e pode ser vista da mesma forma por observadores diferentes. Nem sempre eles querem. Mas, com algum esforço, conseguiriam. Foi feito uma experiência de laboratório. Pediu-se a dez pessoas fechadas numa sala com dez janelas e uma porta que abrissem a porta. As dez dirigiram-se à porta. O experimento ainda está na fase um. As conclusões só podem ser provisórias. Uma corrente diz que se trata de exemplo muito simples e, portanto, não generalizável para situações complexas como saber quem joga mais: Neymar ou Pará? Outra corrente considera que os envolvidos foram condicionados ao longo do tempo para entender porta como porta e por isso agiram com animais amestrados, o que invalidaria qualquer inferência. A experiência só teria valor se eles nunca tivessem ouvido falar em porta, janelas e outras abstrações.

      Informado sobre essas controvérsias e outras – quem transmite a dengue, mosquito ou formiga? –, um velho camponês teria murmurado:

– A vida não cabe na ideia.

      Foi o mesmo que disse enquanto assava uma espiga de milho:

– Deixar de homenagear o passado não significa apagá-lo.


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