Crônica: Adão e o umbu

Crônica: Adão e o umbu

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 Faz algum tempo, Iara telefonou para mim dizendo que tinha novidades do Wilson. Iara é minha irmã mais velha. Wilson é um bairro de Santana do Livramento que cresceu atraindo gente do êxodo rural. Moramos ali por alguns anos. Convivi com muito gaudério saudoso do pano verde dos campos lustrando seus arreios e contando “causos” de domas e de carreiras de cancha reta. Meu avô foi um deles. O Wilson sempre me lembrou um cenário da “trilogia do gaúcho a pé”, de Cyro Martins. Wilson e Armour, nomes de frigoríficos dos Estados Unidos, batizam dois mundos santanenses, o rural e o industrial. Agora essas coisas não passam de marcas do passado. Não há mais frigoríficos.

No Armour, homens ainda sonham com a reabertura do frigorífico São Paulo. Vez ou outra, corre a notícia de que vai reabrir. Trabalhadores chegam a se preparar para retomar rotinas esquecidas. Nunca funciona. Quando eu era menino em Livramento quase todo mundo trabalhava no Cooperativa Santanense de Lãs, nos frigoríficos Armour ou São Paulo, na cervejaria Gazapina, no Lanifício Albornoz ou nas barracas de lã. Tudo se foi, tudo se apagou, tudo se transformou.

– O Adão morreu – me disse a Iara.

Fiquei consternado. Adão passou a vida no Wilson. Nunca saiu de lá. Foi barbeiro e dono de bar. Na sua casa de esquina os homens se reuniam para conversar. Era um ponto de referência. Falava que queria me ver para contar as histórias dos últimos 30 anos em que tenho estado ausente. Vou sempre com pressa. Não encontrei o Adão. Que pena.

– Cortaram o umbu – disse Iara.

– O umbu da frente da casa do Seu Walter da ferraria?

– Esse mesmo.

Era um umbu frondoso. Centenário. Tão tradicional quanto fora a atividade do Seu Walter: ferreiro. Um umbu que me fazia pensar noutro, o umbu do pátio do meu avô, na Florentina, onde eu passava minhas férias escolares e que tinha um oco enorme onde podíamos nos esconder.

– Adão viu cortarem o umbu. Morreu três dias depois.

O Wilson agora não tem mais Adão nem o velho umbu. Viveram e morreram juntos. Como imaginar Adão sem o umbu? Como poderia ser? Confesso que certa melancolia me ensombreceu o olhar. Vacilei.

– Levaram o corpo de Adão para cremar em Pelotas.

– Foi a primeira vez que ele saiu do Wilson, não?

– Acho que sim.

O leitor tem todo o direito de me perguntar: “E daí?” É uma pergunta dura, agressiva como um soco no estômago. Por que conto para todos uma história tão restrita a um lugar? Porque ela me parece universal: o tempo passa, os homens passam, as lembranças se esmaecem, as árvores tombam, as casas, como dizia o poeta Eliot, vivem e morrem. Somos nós que passamos deixando na memória, nalguma memória, um rastro, a sombra fresca de um umbu na qual Adão contava histórias para meninos como eu que sonhavam em sair pelo mundo em busca de aventuras. A infância é uma aldeia da qual nós saímos, mas ela não sai de nós.

– A Casa Amarela não é mais amarela – disse a Iara.

– Não?

– Não. Agora é verde.

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