Crônica: agora estou aqui

Crônica: agora estou aqui

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Essa é uma expressão que me obceca tanto quanto as pistas do que serei amanhã antes do fim. Agora estou aqui vendo a banda passar como num filme e ouvindo a canção que será sempre a nossa, pois todo grande amor só é grande se tiver trilha sonora e súbitas declarações sussurradas em meio ao café da manhã. Agora estou aqui sonhando com as estrelas que brilhavam adiantadas quando ainda pretendíamos mudar o mundo e deixavam no céu um rastro de espuma numa cauda longa de utopias e de esperanças tão vastas quanto o firmamento e tão luminosas quanto uma estrela cadente. Agora estou aqui ouvindo Miles Davis e me lembrando de tudo que precisamos esquecer a cada dia para crer no futuro do país, no fim da corrupção, num lugar muito bom para viver.

É tarde para tanta coisa, mas cedo para desistir dos desejos e das expectativas em relação a um destino mais justo para todos mesmo que esta expressão “para todos” desperte o ódio dos poucos que se comprazem em fazer de conta que falam por muitos. Agora estou aqui, na tarde cinzenta de agosto, apreciando a opacidade da vidraça, como mariposa encurralada, aceitando o ciclo das estações, condenando o aquecimento global e me esforçando para criticar a antecipação da primavera com seu cortejo de jacarandás e de ipês floridos. Estou aqui como nunca estive, entre enraizado e fugitivo, fazendo considerações anacrônicas sobre a poesia e calculando o tempo de retorno dos barcos.

Agora estou aqui, com as mãos em concha e olhos úmidos, depois de tudo, que é sempre nada quando apertamos as mãos e damos sem medo o grande salto para seguir em frente certos de que haverá amanhã e de que seremos capazes de amar o passado, de viver o presente e de almejar o futuro. Não, as mãos unidas não são imagem de novela, mas a expressão mais pura do nosso cotidiano vivido como o pão que amassamos. Somos nós que todos os dias recomeçamos com um beijo, um carinho, um afago, uma palavra de estímulo, um sorriso cúmplice. Agora estou aqui na frente da televisão recebendo as manchetes que ecoam numa escalada de fatos repetidos, de escândalos continuados, de tragédias permanentes, de mentiras encordoadas, de personagens cínicos jurando inocência para um público desencantado. Agora estou aqui tentando separar o joio do trigo e a mentira da verdade. Agora estou aqui, na pós-verdade, contando histórias de um tempo sem ilusões.

Passo de um site para outro, de um portal para o seguinte, de manchete em manchete e daqui onde estou fico perplexo com minhas conclusões tão pateticamente óbvias: nunca se deve duvidar da capacidade de um político de não aprender com os erros, de não ouvir o grito das ruas, ainda mais que elas gritam cada vez menos, afundadas num silêncio gritante, de optar pelo contrário do que se espera. Agora estou aqui analisando o projeto de reforma eleitoral que propõe o “distritão”, uma falcatrua pensada sob medida para manter os mesmos no poder, diminuir a oferta de candidaturas e perpetuar a gangue dos que só trabalham por seus interesses e seus negócios sem se importar com os holofotes da mídia nem com os olhos ofuscados dos mais ingênuos.

Agora estou aqui me perguntando enquanto o sol se põe como um fogo esmaecido por trás dos edifícios com seus olhos de vidro: quando foi a última vez que acreditei realmente que tudo vai dar certo, que tudo vai melhorar, que nossa velhice será feliz, protegida e com o necessário para enfrentarmos, quando infelizmente chegar a hora, doenças e medos? Agora estou aqui fazendo as contas da aposentadoria, espremendo meses e anos, tentando controlar a ansiedade, driblando a decepção do presente com fotos de viagens tão recentes e antigas. Agora estou aqui vendo as imagens que trouxemos de Quelimane, em Moçambique, tão maravilhosamente verdadeiras e melancólicas, e me dizendo quase com incredulidade: eu estive lá. Voltaremos? Não sei.

Agora estou aqui contabilizando afetos, classificando frases, salpicando a página com sinais vãos, supurando emoções como quem espreme na mais tardia das horas um velho abcesso na expectativa de ver o pus saltar como uma libertação merecida pelo tanto de sofrimento. Agora estou aqui, diante da imobilidade silenciosa do tempo, esse carrasco, vendo o calendário confessar sua inércia e o relógio se esfalfar gratuitamente. Agora estou aqui me dizendo que ainda há um lugar para a crônica neste mundo e que os cronistas chegarão ao paraíso se nunca desistirem da beleza das palavras.

Agora estou aqui à boca da noite, na pasmaceira do dia, escondendo meus poemas, sempre mais irônicos e melancólicos, ironicamente melancólicos, num arquivo secreto, tão secreto quanto minhas ilusões sobre o futuro do país, tendo como senha o nome de um poeta maldito, contemplando minha carteira de trabalho como se fosse um documento histórico a ser um dia exumado por um arqueólogo e me preparando para migrar com os elefantes em busca do esquecimento.

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