Crônica: armas da manhã

Crônica: armas da manhã

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É preciso entrar numa espécie de transe para se entender algumas coisas da vida. Quem não pensa na estranheza de cada dia? Cruzamos muito depressa por certos jardins e pensamos levianamente que as rosas são passageiras. As rosas são obviamente eternas. Perenes como as nossas lembranças. Acreditamos que os perfumes da natureza se evaporam como brisas, aquelas brisas que um dia nos refrescaram o rosto subitamente ao atravessar uma rua, galopar a cavalo, abrir a janela de um ônibus, colocar a cabeça para fora do carro rodando lentamente ao entardecer.

A vida é um advérbio de tempo ou de modo escrito a mão.

Um empresário de bermuda e camisa polo me disse num sábado de manhã que toda crônica poética é inútil e que o tempo da poesia morreu. Um gari me perguntou onde poderia encontrar mais poesia na vida e mais vida na poesia. Uma senhora a caminho da morte me lembrou que a existência não cabe num livro. Talvez numa crônica. Um estudante de filosofia me surpreendeu com sua pergunta: “Para que perder tempo com metáforas”? Um policial fardado me desconcertou com seu sonho: “Quero ser poeta depois de me aposentar”. Um morador de rua, lendo um velho texto meu, à sombra de uma marquise rachada, me disse: “Gostei. Senti cheiro de tripas. Vem passar uma temporada com a gente, vai”.

Um senhor que não se identificou, magro e rígido como um poste de concreto, me interpelou de dedo em riste na frente do Pronto Socorro:

– Não sente vergonha?

– De quê?

– De escrever textos em tom poético.

– Não.

– Pois deveria. É indecoroso.

Fiquei vermelho. O sinal verde me salvou. Atravessei. Vi, da outra margem da rua, que ele me perseguia como um periscópio ou como o mastro de um navio espião. Deixei-me tragar pelo movimento. Cada pessoa que passava por mim era como Lord Jim, personagem fantástico de Joseph Conrad, em busca da sua segunda chance. O poeta Saint-John Perse capturava sensações. É dele este flagrante: “As armas na manhã são belas e o mar”. Entro nesse mar com minhas armas, meus deslumbramentos e minhas vergonhas. Quando me dou por conta, enfrento ondas altas como edifícios no centro da cidade, robustas como silos à beira da estrada, vazias como as montanhas que perderam seus mitos.

Pensemos nisso por alguns instantes, pensemos sem preconceito: “As armas na manhã são belas e o mar”. Façamos isso com a seriedade de quem vai ao supermercado pensando na inflação e nas promessas do ministro da Fazenda, façamos isso com a gravidade de quem caminha até a esquina para respirar e pensar na vida, façamos isso com a reverência de quem se levanta no meio da noite e abre uma gaveta para rever uma foto antiga e aliviar-se de um peso no coração sentindo a brisa do passado bombear oxigênio para um corpo asfixiado pelas lembranças. Façamos isso como quem já viveu o suficiente para saber que os mistérios da vida são tão cotidianos quanto lavar a louça.

O tempo se contrai e distende, o perfume das rosas do passado não se evapora e vamos nos transformando na frente do espelho: milhões sofrem de ansiedade, de angústia, de grandes ou pequenas dúvidas e dívidas, de pedra no rim ou de falta de fé. Uns tomam Rivotril, outros se aliviam com Prozac. Muitos fazem terapia. Outros se espicham em intermináveis alongamentos. Uns correm na rua, outros correm da rua, outros ainda contemplam a lua e lamentam que já não existam tantas estrelas no céu, ignorando que um véu lhes condiciona o olhar. Uns vivem para os filhos e netos. Outros viajam em busca de novidade. Uns vão ao Egito ou à Tailândia. Outros se exilam na infância ou em casa.

“As armas na manhã são belas e o mar”. Outro francês que, se não era poeta, amava a arte e acreditava no seu poder revolucionário, o louco Guy Debord, escreveu sem remorso: “O espetáculo não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”. Atrevo-me a divergir com amargura: “O espetáculo não canta os homens e suas paixões, mas as mercadorias e suas armas”. O espetáculo não canta as belas manhãs e o mar, esse gigante que se aninha aos nossos pés como um cão nas areias de nossas aldeias, mas as armas que lhe permitem vender as ondas como mitologias e estas como sonhos descartáveis ou fábulas seriadas de estação. E assim substituímos sem grandeza nem despedida as utopias pelos gadgets e a Nona Sinfonia pelo Iphone X.

Não, não nos vergastemos as costas magras e sulcadas por arados da velhice ou da pressa com chicotes inflamados de ódio pelo capitalismo e pelo comunismo, não nos deixemos absorver pela melancolia das horas mortas, não nos entreguemos antes do tempo, não aceitemos a morte da poesia antes da morte do último poeta. Tentemos apenas pensar naquilo que de fato pensamos, com nossas palavras e limitações, quando nos despimos de todas as formalidades e convenções, quando nos sentimos nus e sinceros com os pés enfiados na areia ou nos tapetes de nossos apartamentos: “As armas na manhã são belas e o mar”.

 

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