Crônica: bola e bala

Crônica: bola e bala

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 A primeira fez que eu chutei uma bola, com alguma consciência de que a bola fazia parte de um jogo, que se mostraria fascinante, eu tinha oito anos de idade e toda a esperança do mundo. A bola era uma cabeça bege de boneco. A gente dizia “bonecro”. Os times foram formados à sombra dos cinamomos, que chamávamos de paraísos, junto à estrada de ferro, num pátio onde foi riscado um retângulo como campo. A gente falava “cancha”. De um lado, quatro meninos negros e eu. Do outro, quatro meninos negros e um guri branco que já deixou de jogar nesta vida. Por que eu me lembro disso? Pela emoção que me causou.

Os adultos gritavam dizendo o que devíamos fazer. A idade dava autoridade para recomendar jogadas que não conseguiam fazer. Falavam “pelota” em vez de bola.

Não diziam drible, mas gambeta. Eu ouvi:

– Dá uma gambeta nela, Mirinho, vai.

– De “plancha” de pé, de “plancha”, guri.

– De bico também vale.

Estávamos em 1970. Era Copa do Mundo. O México estava em nossas bocas como se soubéssemos onde ficava. Ouvíamos os jogos no rádio. A Guaíba ressoava no grande rádio ABC da nossa casa ou numa caixa preta colocada sobre o balcão do armazém. Não me lembro de quase nada sobre futebol antes disso. Foi como se eu tivesse nascido ali. Um cachorro baio, o Amigo, corria junto com a gente e, de vez em quando, abocanhava a bola e saía correndo com ela. A gritaria era geral.

– Pega o cusco, pega o cusco.

Cabeça de boneco era bola. Dizer o contrário ofendia. Ali, compreendi que o jogo metamorfoseava as pessoas e os objetos. Havia uma alegria incontida em correr atrás do “esférico”, que, no caso, não era bem isso. Um narrador improvisado falava até em balão de couro.

– De canhota, de canhota – gritavam nossos incentivadores quando desferíamos um chute de direita perdendo o gol por falta de ângulo.

– Sai, sai, sai – o goleiro saiu da cancha. Tomou gol e gargalhadas.

Gol era “tento”. Chute, pataço. Trave, goleira. Drible, além de gambeta, era “dible”. Perdemos o jogo. Não me lembro o placar. Sei que marquei um gol que não alterou o resultado. A tristeza maior, contudo, foi o fim da partida. Era meio-dia. Os jogadores debandaram para não perder a “boia”. Minha barriga chorava de fome, mas eu queria continuar. Acabava de descobrir uma paixão para toda a vida. Quarenta e oito anos depois, cabelos brancos, joelho doendo, eu continuo a correr atrás da bola. Quando chuto com gana, penso estar batendo na cabeça do “bonecro” para marcar um “tento” decisivo. Ainda ouço alguns dos bordões gritados à beira das nossas canchas daqueles tempos:

– É bola e bala. Mete a pata!

– Tá mais embolado que café com farinha de mandioca.

O guri branco, que já se foi, era órfão. Jamais soube como ele foi parar em nosso universo. Surgiu nalgum dia e ficou como se fosse nosso irmão. Depois de um jogo, ele ficou abraçado com “bola”.

– Quando a gente joga, sinto que tenho uma família – murmurou.



     

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