Crônica: futebol como metáfora

Crônica: futebol como metáfora

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– Crônica é crônica – disse Arlindo.

– Nada mais exato. Eu mesmo sempre digo isso.

– Nunca te ouvi falar assim.

– Mas falo. Nem sempre sou ouvido.

– Crônica é crônica independentemente do assunto.

– Como assim?

– Assim, ora. Crônica é crônica.

– Ah, não, crônica de futebol eu não aguento.

– Que preconceito é esse, Antônio?

– Preconceito?

– Claro. Crônica é crônica.

– Nem sempre.

– Como assim? Que contradição é essa?

– Contradição, não. Critério.

– Eu sabia. É só apertar que a verdade salta.

– Apertar, não. Focar.

Os dois amigos estavam na terceira cerveja. A conversa fluía como o líquido gelado consumido em pleno inverno. As imagens na televisão prometiam um jogo duro entre Alemanha e Suécia. O sol morno iludia os passantes. Estava frio. Arlindo e Antônio haviam começado o papo com uma revisão das últimas mancadas de Donald Trump. Em seguida, tinham comparado o americano com Jair Bolsonaro. Estavam em sintonia nesse tema. A coisa começou a se complicar quando Neymar virou objeto de análise. Para Antônio, Neymar é um fingidor, um mau-caráter, um sem caráter, um sonegador de impostos, um malandro, um cai-cai, um mimado. Para Arlindo, um craque de personalidade forte que não aceita ser caçado em campo. O debate aqueceu o ambiente. O tom de voz subiu.

– Neymar me enche o saco – disse Antônio.

– Por que tanta raiva dele?

– Não tem raiva, não, Arlindo. Ele não provoca empatia. É só isso.

– Conversa fiada, meu. É ódio mesmo.

– É só a gente discordar que a verdade salta, né?

– Salta o preconceito.

– Ora, para com essa conversa mole.

Muita gente começou a se meter na conversa. Foi aí que Arlindo disparou o seu clichê preferido com ar de quem se prepara para a paz graças a uma bomba atômica tão dissuasiva quanto um suspiro perplexo:

– O futebol é uma das melhores metáforas da vida.

– Ah, não, cara, não me vem com essa.

– Como assim?

– Como assim como assim? Estou falando grego.

– Grego é clássico, cultura.

– Metáfora da vida, não, cara. Aí, não.

– Por que não, Antônio, o que tem de errado nisso?

– Tudo. A vida não é como o futebol.

– Ah, é. Posso garantir.

– Pois eu garanto o contrário. Não tem erro.

– Por que não fazemos um concurso de crônicas sobre o futebol como metáfora da vida para ver o que as pessoas pensam sobre isso?

– Me inclui fora dessa, Arlindo. Basta de futebol.

– Mas não é sobre futebol. É crônica.

– Crônica sobre futebol?

– Crônica é crônica. É cultura.

Antônio sentiu a frase como se fosse um soco. Soltou um guincho. Levantou-se como se estivesse pronto para cair fora. Arlindo custou a entender que era só uma reação corporal expressiva diante de algo incômodo. Antônio era visceral, categórico, definitivo, impositivo.

– Cultura é cultura, cara. Futebol é outra história.

– Futebol também é cultura, Antônio.

– Sertanejo universitário e andar de bicicleta também, né?

– Com certeza.

– Odeio quem fala com certeza.

Arlindo riu. Queria conciliar. Era do seu jeito. Mas o clima já não estava para abraços e alegrias. Sentiu que teria de argumentar. Daria o melhor de si num jogo no qual inevitavelmente seria derrotado. Pensou por um momento em encontrar um jeito de sair da roubada em que se metera. Era tarde demais. Antônio estava pintado para a guerra.

– Futebol é banalidade – disse. – Cultura é transcendência.

O que responder? Dizer que futebol é uma banalidade transcendental? Defender que o futebol é a mais irrelevante de todas as necessidades fundamentais? Tirar o time de campo? Fazer uma piada? Arlindo optou por uma citação. Melhor, por uma referência literária.

– Estou com Eduardo Galeano, cara, fechado por motivo de futebol.

– Agora é que deu pra mim.

– Como assim?

– Sabe o que eu acho do Galeano, Arlindo?

– Não, não sei. E acho que nem quero saber.

– Mas vai saber. É o perfeito idiota latino-americano.

 

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