Crônica: pegadas na areia

Crônica: pegadas na areia

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Fomos a Imbassaí para o Ano Novo. A Bahia me faz pensar na vida. Tendo a refletir sobre o ano passado e o novo tempo. Contemplo as minhas pegadas na areia e tiro conclusões. Até agora, a vida nada me impõe, salvo, talvez, por obséquio, a sina de ser um “cavalheiro” andante. Não confundir com cavaleiro, o que exige mais elegância, postura e treinamento. Como me vejo quando me contemplo nas nuvens? Vou andando por essas ruas de luvas de pelica e cartola, smoking, rolex, fraque, estola. O rolex é só por conta do imaginário. Relógios são dispositivos anacrônicos.

Num mundo hipermoderno, eu me descubro antigo. Gosto de MPB de raiz, de 4-3-3, de Mercedes Sosa, de reler os clássicos e de arroz com pêssego, sem contar que a vida no campo me fascina cada vez mais. Contemplando paredes cruas, sujas, vastas, algo nuas, percebo cenas, revejo novelas obscenas, imagens, estruturas, paisagens gráficas, luminosas, algumas, de neon, gigantescas, pornográficas, fantasmas de papel crepom, coisas assim de todo dia, toda hora, isso que se acumula nas entrelinhas da memória. Tapetes de “ouriversaria”, tecidos com a palavraria dessa amargura do alvorecer, enquanto, elegante, bato bola com meus projetos e utopias.

Passo por uma gaivota. Na lente embaçada pelo calor vejo grafites como legendas, mitos, boatos, reflexos dessas antigas lendas, pirâmide invertida, gols na Fonte Nova, e ecos dessa arte controvertida, a arte de existir contra ventos e marés. Mas o que verte mesmo nas calçadas é sangue, suor, esperma e medo, esse quinhão do qual todos temos uma parte por jurisprudências das mesmas alçadas que as sentenças feitas de arremedo. Eis a vida. Nada de velho no front. Tudo é novo como o sol. Converso com o jornaleiro, cumprimento o jornalista, passo moças em revista, observo o papeleiro, o pivete de olhar ligeiro, o fluxo, ora.

Faço uma fezinha no jogo do bicho. Pego papel do chão e jogo no lixo. Em vão, me provoca um policial de bermuda. Se não ajudo velhinhas a atravessar na faixa, ando horas compondo versos de cabeça baixa e já me dou por satisfeito. Quando todos, enfim, vão trabalhar, embora a vida esteja noutra lugar, é minha hora, morosa, de batalhar o pão de cada linha. Dou duas solenes cambalhotas, imaginárias, secas, gordotas e corro para a roda-gigante. Lá de cima, sem minha armadura, vestindo a nudez mais pura, vejo marchar os elefantes a trote para morrer nos escritórios. Ao cair da noite, haverá um renascimento. Todos descobrirão o firmamento, um lugar mais alto do que o céu da firma, mais firme do que o contracheque.

Burocratas, funcionários, bancários, um estelionatário, todo aquele tropel planetário desfila no meu imaginário. A cidade me chama de maluco porque não quero virar suco. Eu grito: to...mate! Morro antes com a mão estendida. Rastro de gaivotas nas raias sob o som monótono das vaias. Amanheço no aeroporto. Gastei o décimo-terceiro. Uma fumaça branca coleia adiante num céu de franjas vermelhas. Amanhã ainda não tem futebol, mas já tem a certeza de que a vida continua com seus sinais, homens e crônicas.

Agora é que são elas.

O Brasil sai do armário.

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