Crônica: só o essencial fica

Crônica: só o essencial fica

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Ocupações

 

      Fomos ao cinema ver “Praça pública”. O filme é fraco como praticamente toda comédia francesa recente. Já passei da idade de ver os filmes de Lars von Trier e assemelhados. Talvez, porém, nunca consiga ver os blockbusters do entretenimento radical nem o besteirol das estrelas de televisão brasileiras. Encontramos uma senhora que citou várias das minhas crônicas, inclusive uma sobre um pomar com gosto e cheiro de infância.

– Por que não fala mais das suas velhinhas leitoras? – ela me perguntou.

Falha grave da minha parte. Tenho andado muito ocupado com coisas aparentemente mais importantes como as contradições nacionais. E foi assim que esqueci dos pomares, das velhinhas, das pandorgas, dos perfumes de antigamente e do tamanho das cagarras. Foi assim também que me esqueci de montar no “alazão da noite” e sair por aí atrás do Luar. Os comentários passam. Só as crônicas ficam. Os comentários são efêmeros. As crônicas são intemporais, universais, eternas, especialmente quando falam do singular.

Como dizia Pascal, a parte está no todo, que está na parte. Cada um de nós é todo mundo. Só sei da dor do outro pela minha, pois a dor do outro também é minha, a dor do outro é a minha. Não sei dos sentimentos dos pássaros que migram, mas intuo que guardam na memória a natureza, que é uma forma de falar do que somos e talvez do destino, o que nos escapa.

 

Quem não se emociona com os pássaros

 

Que partem para o outro lado do mundo?

Será que eles sabem mesmo aonde vão

Ou, como os homens, voam para o fundo,

Fundo imenso do tudo, do nada, da imensidão?

 

Há em cada pássaro uma solidão desplumada,

Como se cada ave solene se despisse no ar,

Mantendo na revoada a vida por um penar.

Canto e esperança sobre a água salgada.

 

Será que os pássaros sentem saudades do sol?

Levarão os pássaros na bagagem uma lembrança?

Memória das pedras, dos ninhos, de um arrebol?

 

Existem pássaros que voam em esquadrão,

Podem ser vistos zumbindo no azulão,

Quem são eles, esses estorninhos?

Por que não escolhem outros caminhos?

 

Pomares, quintais e pêssegos só são menos eternos que a loucura do cotidiano. Tudo passa, passamos nós, fica a sensação de que nos repetimos.

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