Crônica: sigamos pelo caminho

Crônica: sigamos pelo caminho

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 Às vezes, inesperadamente, restos de poesia ecoam na minha mente como murmúrios do mar ouvidos numa concha recolhida nalguma lagoa de água doce numa tarde inesquecivelmente esquecida da infância. Outro dia, quando cruzava a cidade num ônibus, ressurgiram na minha boca, sem que eu conseguisse me impedir de recitá-los, parecendo louco a uma criança que me observava, ao lado da sua mãe que bocejava, dois versos de Eliot: “Sigamos então, tu eu,/enquanto o poente no céu se estende”. Meu cérebro entrou em convulsão. Fui acometido de uma quase vertigem.

Sigamos então, tu e eu, enquanto a vida passa aos sobressaltos, ouvindo as notícias no rádio das execuções de inocentes e recebendo ao amanhecer a benfazeja novidade de mais um nascimento condenado a suportar nossos erros, a abraçar nosso modelo de vida, a comemorar nosso “melhor dos mundos”. Sigamos então, tu e eu, enquanto o ferido agoniza no Pronto Socorro e o projeto de poeta abandona a obra para escrever autoajuda. Sigamos nosso caminho ao longo dos anos esquecendo felizmente de contabilizar os mortos, de somar os desempregados, de lamentar as partidas, de enterrar as ilusões e de embalsamar os sonhos que ainda florescem em meio ao matagal da desilusão.

Vem, sigamos então, tu eu, ignorando o uivo da sirene na madrugada branca de nevoeiro e azul de metileno, as portas e janelas lacradas com grades escuras, o paciente que espera pálido o exame marcado há quatro meses e dezoito dias, o remédio que só será entregue na segunda-feira porque a farmácia popular aderiu ao ponto facultativo, o amanhecer que asperge de brisa o rosto que o contempla por uma fresta do sétimo andar, de onde se vê a amplidão da cidade no seu presente perpétuo tendo como marcas do passado, sem qualquer futuro, velhos prédios que lembram dentes cariados numa velha boca desdentada. Sigamos, sim, sigamos, saudando a chuva que se aproxima.

A criança sorria e me botava a língua. Eu só pensava nessa fórmula de repetição: sigamos então, tu e eu, de mãos dadas na tarde que morre, abraçados na manhã que corre, trocando beijos na noite que escorre, renascendo juntos enquanto dois homens consertam a rua e uma mulher seminua oferece seus serviços aos carros que zumbem como besouros escuros no centro da cidade onde famílias dormem sob viadutos e jovens acendem clarões delirantes em cachimbos de pedra dura. Sigamos, tu e eu, por essas largas avenidas que levam ao infinito.

Por um momento, as frases se transformaram em chaves quase mágicas dando acesso a um mundo de fantasia ou de mistérios: sigamos então, tu e eu, por essas estradas de estrelas por onde se perdem em longas caminhadas os seres que amamos e já partiram, sigamos pelas vias do arco-íris, onde correm depois das chuvas nossos amigos que nunca esquecemos, embora não os vejamos há séculos, sigamos pelos dias e noites como desbravadores em busca da porta que abre nosso imaginário às percepções que nos açoitam com suas provocações e enigmas, sigamos, passo a passo, sem pressa nem demora, rumo ao maravilhoso que vaza do continente obscuro do nosso inconsciente.

Onde queremos chegar quando nos enraizamos? De onde partimos quando nos situamos? Por que queremos avançar quando recuamos? Sigamos então, tu e eu, como se o vento nos empurrasse suavemente na direção do poente, esse poente aveludado que o poeta viu se estender sem se estender sobre ele, esse poente que sempre se estende como um manto cravejado de brilhantes sobre as terras, sobre as montanhas, sobre o mar, sobre o universo provisório, esse poente que nos convida a voar quando nos sentimos propensos a desertar. Sigamos então, tu e eu, arrancando páginas de livros para guardá-las nos bolsos, colecionando impressões em catálogos organizados com rigor classificatório, o amor da mãe pelo filho, a palavra de amor dita quando o trem já partia, o consolo enviado pelo sedex, o perdão tardio pelo whatsapp, o gemido.

Vem, vamos seguir, tu e eu, nós dois formando nós firmes e flexíveis, nós que decidimos um dia conjugar o verbo compartilhar. Nós, bem entendido, que somos todo mundo e nós dois, cuja singularidade se perde e se encontra na universalidade da experiência comum. Sigamos então, tu e eu, como as raízes da poesia se espalhando embaixo da terra, aparecendo, às vezes, na superfície, ameaçando derrubar as sólidas paredes das casas, levando seiva aos nossos corpos e mentes ressecados, alimentando nossos devaneios como o de um dia cavalgar cometas na solidão das galáxias que passam como os temores.

A criança faz uma careta para mim. Eu sorrio para ela, que se aperta contra a mãe e tapa os olhos. Sigamos então, tu e eu, deixando pelo caminho ressentimentos, mágoas e rancores, mesmo sabendo que o corpo no hospital espera pelo atendimento, que talvez não chegue a tempo, o povoado já não crê no retorno do filho que partiu quando jovem, a vida é como um cão se espreguiçando ao sol antes de uivar para um trem e sumir do nosso campo de uma visão como um poente morto.

 

 

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