Crônica: sinais da velhice

Crônica: sinais da velhice

Quando a moça dá lugar no ônibus

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Ando de ônibus. É o meu meio de transporte favorito. Aprendo nas viagens. Leio. Não preciso de tecnologia para encontrar um ônibus que me leve ao destino. Tenho falado muito do tempo que passa e me torna idoso. Escrevi, no passado, sobre a crise dos 40. Hoje, trato da chegada dos 60. Os sinais da velhice são claros. Outrora, quando jovem, eu não usava palavras como outrora. Depois, alunas passaram a me chamar de “senhor” e de “seu Juremir”. No ônibus, começaram a levantar para me dar o lugar”. Meninos também. Agora, ficou pior.

      Conto a história. Eu estava em pé no ônibus. Sem aperto. Confortável. A menina viu e levantou-se. Cavalheirescamente eu fiz sinal com a mão de que ela podia continuar sentada. Não deu certo. Ela insistiu. Nada podia detê-la. Estava determinada a me ceder o lugar. Um furacão. Tentei demovê-la com elegância. Não queria falar para não demonstrar ressentimento ou humilhação. Era uma conversa por mímica. Por meus gestos, eu dizia não, por favor, imagina. Ela rebatia com gestos categóricos de sim, como não, o senhor vai ficar muito melhor sentado. O ônibus inteiro passou a acompanhar a disputa. Era disso que já se tratava: de uma disputa. Quem seria o vencedor da contenda?

      Eu já gritava interiormente: “Não quero esse lugar de maneira alguma”. A menina não se intimidava. Ela estava certa de cumprir o seu dever moral. Ceder o lugar para o velhinho. Rebatia: “Aceite a sua condição, reconheça a sua idade, cumpra o seu dever: sente-se”. Temi que começássemos a falar em voz alta. Era um confronto de gerações. Por um momento, refleti: por que essa situação me incomoda tanto? Não respondi. A menina já estava no corredor. O lugar vago se oferecia. A moça, sentada ao lado, continuava com as pernas no corredor abrindo passagem para a minha instalação no banco da janela. Eu me recusava a capitular. A plateia aguardava ansiosamente o desfecho. Qual seria?

      Por alguns minutos, ficamos os dois em pé, a menina e eu, sem nos olharmos. Foi um longo breve momento de tensão. O que ela estaria pensando? Eu pensava no tempo, na vida, nas convenções sociais, nos rituais e na boa educação da guria. Quem havia lhe dado tamanha boa educação para me humilhar assim em linha pública a caminho do trabalho? Por que eu não me recolhia à privacidade dos aplicativos como qualquer pessoa da minha idade com um bom emprego? Por que não aprendia a dirigir para nunca mais ter de enfrentar tamanha gentileza?

      O acaso entrou em campo para resolver o impasse. Alguém se levantou noutro lugar para descer. Corri para o novo banco disponível. Era uma questão de honra. Fui salvo pela sorte. A menina ficou em pé. Não voltou para o seu lugar. O banco permaneceu vazio até que uma jovem senhora o ocupou. O tempo passou. Meus cabelos brancos me denunciam. O menino que eu sinto dentro de mim já não convence. Visto de fora, sou um velho. Preciso urgentemente me acostumar com essa ideia. O tempo de viajar em pé no ônibus passou para mim. Salvo em casos de falta de educação. O meu problema, porém, é o contrário.


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