Crônica: uma rotina

Crônica: uma rotina

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De repente a gente vê que tem uma vida. Uma rotina. As coisas se encaixam. Era domingo. Estávamos atravessando a Praça da Alfândega depois de termos visitado a Bienal do Mercosul no Santander, no Memorial e no MARGS. Bela homenagem à cultura africana. Nosso passeio cultural vinha logo depois do tradicional almoço no Barranco, a melhor churrascaria do país, à sombra das árvores nativas. A cidade estava vazia. O centro exibia a solidão provisória e a pobreza permanente dos seus tantos excluídos. Encontramos o menino que trabalha no Guion Center, na Cidade Baixa, nosso destino quase certo de sábado à noite.

– Tem algum filme bom por lá?

– Gostei do “Ciganos da Cimbra” – ele responde.

– Precisamos ver. Fica para sábado que vem.

Estávamos indo para o Capitólio ver “Amantes constantes”, do Philippe Garrel, no ciclo sobre maio de 1968. Quando a gente se dá conta virou consumidor de imagens em tempo integral. A Netflix preenche qualquer sobra de espaço. Ficamos até tarde da noite vendo “Merli”, série sobre um professor de filosofia pouco convencional. Segunda-feira é dia de muito trabalho. Até o correio entrega pacotes. Um deles vem da França, da editora Gallimard. Abro cheio de curiosidade. Surge um belo volume. Um livro de 470 páginas: “Plaire et toucher – essai sur la société de séduction”, de Gilles Lipovetsky.

A dedicatória me fez pensar sobre as relações ao longo do tempo: “À mon cher Juremir, avec l’amitié fidèle de Gilles”. Faz 25 anos que alimentamos essa amizade fiel feita de encontros, livros e pequenas confissões. Falamos dos nossos projetos. Apostamos no futuro. Não sabemos fazer outras coisas. Nem queremos. O que pode ser melhor para mim que dar aulas, escrever, trabalhar em rádio, pesquisar, orientar mestrando e doutorandos e andar por aí em busca de fruições estéticas?

Mais um dia se passa. É hora de ir ao Araújo Vianna ver e ouvir os cubanos do “Buena Vista Social Club”. Que show! Um banho de ritmo, de paixão e de nostalgia. No meio dessa rotina, outra rotina: um Gre-Nal. Como diz a frase genial na sua obviedade: “Gre-Nal é Gre-Nal”. Bora provocar um pouco a galera nas redes sociais. É tudo tão sério. O torcedor típico acredita deliciosamente em verdades absolutas. Penso nisso tudo e já antecipo uma comentário: “Esse cara tá se achando!”

É verdade. Eu me acho. Sim, eu me acho um cara meio perdido no mundo vivendo a sua rotina com uma sensação de que o mundo escapa a cada dia por entre os dedos e que é preciso correr para apanhá-lo. Sobre a mesa, um livro me espia: “1968-2018, 50 anos do POC”, organizado por Raul Pont. Jovens gaúchos ajudaram a criar o Partido Operário Comunista. Era época de utopias. Outro volume me espera para nova leitura: “Viagem na irrealidade cotidiana”, de Umberto Eco.

Há mais: “Um cara coçava as costas da minha mãe no baile”, novo romance do Paulo Ribeiro, escritor de talento que persevera na sua convicção estética e na sua busca de renovação. O resto é o corpo embalando a mente em busca de estímulos em algum lugar da cidade.

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