Crônicas: certas noites

Crônicas: certas noites

A memória como jogo de espelhos

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      Havia sempre um perfume de cedro queimando ao anoitecer.

Já escrevi isso. Faz poucos dias. Essa imagem é como um fogo que nunca se apaga. Que triste sina a de passar a vida alimentando labaredas que não aquecem. A primeira e única vez que a vi foi no Parque Internacional, a praça que une Santana do Livramento e Rivera, o Brasil e o Uruguai, dois mundos, dois imaginários, uma só abstração feita de espantos. A lua exibia uma frieza de cristal. A brisa soprava com a maciez do amanhecer. Mas era tarde. Ou cedo para a luz do dia transpirar. A cidade se recortava com traços finos de jornal. Só faltava gritar a sua manchete com voz de guri magrelo e descalço. Havia uma suavidade no ar que se confundia com o silêncio. Depois, eu parti. Trouxe comigo a imagem dessas noites que retornam.

      Não havia poesia nesse quadro que se repetia como o uivo de um cão na esquina onde se elevava um ipê. Nessa época, os poetas já eram malditos e se recolhiam aos bares mais sórdidos para esconder a tristeza ou se fanavam vendo telenovelas. Quer destino mais cruel: não ter religião, não ter partido político, não ter ideologia, não ter uma causa pela qual viver e morrer, só ter a literatura e ser um poeta medíocre? Só havia a crueza da noite escoando como um rio diminuindo a cada ano com a morte consumindo-o pelo caminho numa longa viagem sem volta. Pessoas perseguidas por suas sombras na calçada atravessavam o campo do meu olhar e sumiam no estrangeiro. Soube, anos depois, que buscavam o infinito como quem imagina poder sumir por trás das casas esboçadas num quadro naif de uma aldeia.

      Homens produziam metáforas pobres que se esvaíam ao final das suas falas como se fossem engolidas por desfiladeiros. Eles sempre recomeçavam. Às vezes, jogavam cartas para dissimular. Outras vezes, fumavam só para ver a brasa se avermelhar. Falavam de rios e de assoreamento, de passantes e de epopeias, de lembranças e de utopias, da infância e da morte, do futuro tão próximo e tão distante, do passado que não passava, de luas congeladas nos céus de verão e de amores perdidos em invernos chuvosos, quando o aguaceiro tudo arrastava, tudo, menos o peso de ser o que se era, o que se é, o que nunca se deixará de ser. Mesmo morto. As melhores e as piores metáforas morriam na mesma noite tragadas pela vertigem do efêmero.

      Certa hora, o silêncio se espalhava como uma enchente. A noite descansava. Homens se arrastavam para casa. Por toda parte, sonhava-se. Não havia navios. Nem cabos de guerra. Eu sonhava com rios gigantescos cujas bocas se abriam para engolir travessias. Jovens violentos duelavam com velhos perversos. A verdade era uma arma afiada usada para matar.

Nunca mais – Guardo a imagem daquela mulher, quase uma menina, que só vi uma vez. Era linda, claro. Não a amei. Nem a conheci. Somente a vi por uns segundos. Havia sempre um perfume de cedro queimando ao anoitecer. Eu me orgulhava dessa imagem. Achava que tinha sido criada por mim. Fui reler “O amante”, de Marguerite Duras. Encontrei: “Havia um odor de incenso, sempre queimando ao crepúsculo”. Tudo sempre tem uma origem, a algaravia dos pássaros ao amanhecer, o barulho da chuva sobre o zinco, a água pingando do capim e abrindo um sulco atrás dos casebres na campanha, o barro vermelho luzindo no alto como uma pintura melancólica, as figuras humanas misturando-se nas camadas do tempo como vestígios num sítio arqueológico, a vida indo e vindo num infindável jogo de luz e sombras, com mais sombras do que luzes e mais nuvens do que pontos de fuga e de fulgurâncias.

      Para que escrever sobre isso? A quem podem interessar estas confissões? Elas fazem parte de um mito, o do amor às palavras, às imagens, às metáforas, como modo de desvelamento, aquilo que produz descobrimento, que tira o véu para nos mostrar o escondido por trás da banalidade das coisas, essas coisas que se calam na impotência dos discursos. Havia um fogo ardendo sempre ao amanhecer. Uma chama como símbolo de uma confraria fundamental, a Sociedade dos Poetas Medíocres, esses poetas que não morrem nem devem morrer, pois graças a eles, a nós, o culto à metáfora se perpetua mesmo quando nenhuma imagem faz viver a beleza perdida, aquela que veio e se foi como uma miragem sob a lua.

      Havia uma imagem do passado queimando a cada anoitecer. Essa imagem arde em cada um de nós sem precisar de manifestação. Talvez falemos dela para preencher a solidão das terapias. Partia-se de charrete ou na carroceria de um caminhão ou de uma camionete para tentar a sorte na vida. Levava-se na bagagem de coração uma saudade antecipada que para sempre queimaria ao crepúsculo acedendo memórias e apagando certezas. Por um tempo, haveria com quem compartilhar essa saudade. Depois, restariam os cronistas. Por fim, a pureza da lembrança sem palavras: a passante desaparecendo do outro lado da rua. Homens guerreiam por palavras enquanto as imagens atravessam a fronteira para nunca mais voltar. Fica um rastro perfumando a memória como um cedro queimando ao cair da noite. Até quando?


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