Crônicas: nossos seres invisíveis

Crônicas: nossos seres invisíveis

Brasil vence Argentina por 3 a 0 no Sul-Americano de vôlei

publicidade

– Não sei o que vocês enxergam neste lugar.

– Sei disso.

– Não tem nada aqui.

– Tem, mas só nós podemos ver.

– O que é?

– Nossas lembranças, nosso passado, nossa infância.

– Estão bem escondidos então...

– Está vendo ali, está vendo bem ali?

– Não.

– Ali naquela pedra.

– Naquela pedra vazia?

– Ali o Carlos Henrique sentava.

– E daí?

– Daí que foram dias de muita felicidade.

O lugar de cada um é povoado de seres invisíveis. Quando me sinto triste eu penso assim sem me constranger: vou me embora pra Palomas. Vou me embora pra Palomas. Lá serei amigos de todos. E viverei, enfim, sem um rei. Terei a Cláudia que eu amo nos pelegos que escolherei. Vou me embora pra Palomas, aqui eu até sou muito feliz, mas lá viverei como sempre quis, fazendo aquilo que ninguém me diz. Irei da monarquia à anarquia. Fundarei uma nova dinastia, a casa sagrada da flor dos pampas, cujo brasão aparecerá na tampa de uma lata velha de biscoitos. Montarei como na minha infância um valente cavalinho de taquara, que não fustigarei com uma vara, e vibrarei com minha irrelevância. Soltarei pandorga de cima do cerro, acenarei para a ex-rainha louca, se eu quiser, dormirei de touca. Falarei com Napoleão e Sabugosa, enfiarei de viés o dedo na mucosa, devolverei peixes vermelhos à agua, espiarei nos varais alguma anágua. Experimentarei balé, trova e cordel, rabiscarei poemas em papel.

Vou me embora pra Palomas, lá terei um gato branco preguiçoso, que chamarei de jovem Schopenhauer, e um cachorro preto tão teimoso, atendendo por Nietzsche e Adenauer, que me fará dormir até mais tarde afastando as visitas sem alarde. Em Palomas, terei o meu i-phone, que guardarei embaixo de um cone para alguma emergência. Passearei pelos campos a pé, darei sem problemas marcha-à-ré, não pintarei o rodapé. Deitarei na grama para ler Eliot ou me lembrar de algum saiote. Em Palomas terei milho verde, gaita de fole, burro xucro, moinhos de vento e o que precisar. Se algo faltar, poderei até inventar. Vou me embora pra Palomas onde plagiarei o grande poeta antes ou logo depois da sesta, vai depender do horário da seresta. Só pelo prazer de desafinar, farei versos de pé quebrado, pois conheço o cego dormindo e até mesmo o rengo sentado.

Vou me embora pra Palomas assim que comprar uma chácara.

Pagarei com dinheiro de poeta ou com cheque de viagem.

 

 

     

 

 

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895