Crise dos 60 e coronavírus

Crise dos 60 e coronavírus

Reflexões na zona de risco

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      Estou com 58 anos de idade. Dentro de dois anos, passarei a ser oficialmente idoso. Sofri violentamente a crise dos 40. Cheguei a publicar um livro sobre o assunto: “Para homens na crise dos 40 e mulheres interessadas em compreendê-los”. Acho que não me livrarei da crise dos 60. Como diz aquela canção famosa, “eu já escuto os teus sinais”. Um amigo me estimula: “Tu poderás escrever outro livro: Para homens na crise dos 60 e mulheres interessadas em cuidá-los”. Digo que os 60 de hoje são os 80 de ontem. Mas logo desconfio: bem, os 75, vai.

      Na crise dos 40, estabeleci tipologias fundamentais para a compreensão do fenômeno. Identifiquei, por exemplo, os três tipos de mulher que cruzavam a vida do quarentão desesperado: a interessante, a interessada e a interesseira. É uma terminologia que caducou. O gigantesco Balzac imortalizou “A mulher de trinta anos”. Hoje, seria a mulher de 50 anos. Como são charmosas essas cinquentonas atuais. Muitas mostram corpinhos de 30, roupas de 20 e ousadias de 17. Um show. Não deixam, contudo, de ser interessantíssimas quando esbanjam gostos, modas, corpos e ideias deliciosamente maduros. O mundo ficou mais velho e mais jovem ao mesmo tempo. Tudo que era tabu se esfarela nas academias, tudo que era certo vira uma dúvida permanente e móvel.

      Balzac, no seu tempo politicamente incorreto, podia dizer sem medo que “uma mulher de 30 anos tem atrativos irresistíveis”. Digamos o mesmo para a mulher de 50 anos de agora. O escritor baixava a bola das novinhas: “A mulher jovem tem muitas ilusões, muita inexperiência. Uma nos instrui, a outra quer tudo aprender e acredita ter dito tudo despindo o vestido”. A mulher de 30 anos chamava-se Julie. Hoje, é um nome de menina. A balzaquiana Julie sabia a dor e a delícia de ser o que era: "O casamento, a instituição sobre a qual se apoia hoje a sociedade, só a nós faz sentir todo o seu peso: para o homem a liberdade; para a mulher os deveres. Devemos consagrar aos homens toda a nossa vida, eles nos consagram apenas raros instantes”. Era triste.

A mulher de 50 anos do século XXI pode ser livre. A de 60 anos já não faz concessões, salvo aos seus sentimentos mais profundos e genuínos. Há homens que ficam atônitos. O feminicídio mostra que muitos permanecem no século XIX. O homem em descompasso com o tempo atual é aquele que exclama numa roda masculina: “Não se pode mais ser heterossexual em paz”. Na sequência, discursa sobre os bons velhos tempos de ordem, paz, honestidade e valores. Provocado a responder sobre quando foi assim, arrisca: “Nos anos 1930 e 1940”. Ah, nos tempos da Segunda Guerra Mundial e do nazismo, diz um gaiato. Ele corrige para os anos 1960. Ah, na época do golpe militar no Brasil, diz outro.

      Ainda não sou especialista na crise dos 60. Isso virá com o tempo e o com o estudo. Uma coleta inicial exploratória dos dados indica a existência de dois grandes grupos masculinos na crise dos 60: os que só pensam em viajar; e os que não querem mais sair de casa. As crises etárias são profundamente marcadas por questões de gênero. Mulher na crise dos 60 é uma coisa. Homem, outra completamente diferente. Aliás, nesse tipo de crise há muita mudança de gênero. O cis descobre-se trans. Isso é só uma hipótese. Não cabe generalizar, ainda que a generalização seja um procedimento científico, de modo impertinente.

      Na crise dos 60, a mulher hipermoderna quer descobrir o mundo. Só por espírito aventureiro, decide provar a esfericidade da Terra. O homem, ao contrário, quer voltar para a sua aldeia. Depois de muitas bifurcações, planifica o que lhe resta e quer viver no seu quadrado. A mulher de 60 anos, na verdade, não tem crise, mas libertação definitiva. Se o cara vacilar, ela se separa e mete o pé na estrada. O homem na crise dos 60 é todo nostalgia. A mulher, utopias. A sessentona sarada procura no Google informações sobre aonde ir. O homem, sobre como voltar. A mulher de 60 anos faz planos. O homem, contas. Enquanto a jovem de 60 anos rodopia e dança, o sessentão quer sítio, casa na praia com velhos amigos, bocha, dominó e canastra. Ou isso é nos 70?

       A mulher de 60 anos bate um bolão. O homem vive para o seu joguinho. Existe, porém, segundo as indicações iniciais obtidas, homens na crise dos 60 que rompem com tudo e só pensam em aproveitar a vida até a última gota (não confundir com a última crise de gota). Antigamente a passagem do tempo tornava os homens casmurros. Bentinho, o personagem de Machado de Assis que se angustiava com a possibilidade de ser corno, era, antes de tudo, um homem em crise. Em 2020, conforme pude apurar, o homem na crise dos 60 descobre o bom humor e as agências de turismo. É possível estudá-lo em campo de bermuda vermelha ou rosa, camiseta regata, fones nos ouvidos, com ar dubitativo e cabelos coloridos, seguindo um grupo de senhoras entusiasmadas e enérgicas. Sempre mais longe de casa. Alguns, contando silenciosamente os dias para voltar. Não há revolução sem hesitações nem algumas recaídas. Na crise dos 60 anos a gente pensa nas epidemias enfrentadas e faz do coronavírus um inimigo a ser ser combatido com disciplina e ciência. Bolsonaro não parece ter vivido a crise dos 60. Talvez isso explique a sua incapacidade de pensar para além de umbigo.


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