Cronicamente eu

Cronicamente eu

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Tenho feito muitas palestras em escolas.

São experiências maravilhosas. Encontros com o mundo real. Momentos de interação e descoberta. Não faz muito, no projeto Adote um Escritor, fui ao colégio Liberato Salzano Vieira da Cunha, no Sarandi, em Porto Alegre. Ir ao Sarandi me emociona. Foi por lá que comecei, depois de alguns dias em Navegantes, minha vida em Porto Alegre. Os alunos da escola, sob a supervisão de Osmar Certa e a organização de Kauan Negri, com editoração e ilustrações de Pablo Sotomayor, publicaram um livro inspirados em meus textos. Chama-se “Cronicamente Juremir”. Lindo.

Depois da palestra, algumas crônicas foram lidas para mim. Voltei para casa com meu exemplar. Li com gosto. Infelizmente não tenho espaço aqui para reproduzir todas essas crônicas que me fascinaram. Publico esta, da Rayana Brenda, como uma amostragem.

“Era noite, estava na parada do ônibus, acompanhada com minha mãe. Passou um homem fazendo reciclagem e ao lado dele um menino que aparentava ter dez anos. Essa criança estaria apenas acompanhando o homem ou aquela noite era mais uma de suas noites de ‘escravidão”? Minha reação foi de refletir sobre a vida daquela criança e de todas as crianças de Porto Alegre e do Brasil. Pensei sobre os pais dessas crianças e que esses devem ser tristes por seus filhos terem que passar por isso. O que vale mais: uma criança com um lápis na mão ou uma criança com um martelo na mão? Cada pessoa deveria lutar para livrar as crianças do trabalho. Um trabalho de que na maioria das vezes elas não são sequer recompensadas justamente.

O trabalho infantil é perigoso também porque a criança é vulnerável aos adultos e pode sofrer todo tipo de violência das pessoas que convivem no dia a dia com elas – da agressão física ao estupro por seus patrões, tudo pode acontecer com crianças indefesas. Naquela noite, desejei que um dia o Brasil possa melhorar, que as nossas crianças tenham uma vida mais justa e não uma vida de escravidão, e só assim que todos nós tenhamos uma vida melhor”.

Tem uma crônica linda da Ester Milena da Rosa Cardoso em homenagem ao bairro Sarandi: “Sarandi é meu bairro”. Meu também. Continua sendo. Sempre será. Fico arrepiado quando vou até lá. Isso acontece raras vezes. Um dia, uma amiga me deu uma carona e ficamos rodando pelas ruas do Sarandi como quem caça lembranças. Tudo mexe comigo ali. Cada lugar, cada esquina, cada casa que não mudou, cada praça. A crônica do Bruno Ferreira Fernandes da Costa começa assim: “Numa dessas noites, na biblioteca da escola, enquanto todos líamos os livros de Juremir Machado, perguntei ao professor...” Fiquei feliz.

Ontem era janeiro de 1980. Eu andava pelas ruas do Sarandi tentando saber aonde a vida me levaria. Queria tudo. Nada tinha. Salvo uma coragem que ainda hoje me espanta para me jogar no mundo. Eu era a mais pura tradução daquela música: “Caminhando contra o vento/Sem lenço e sem documento/No sol de quase dezembro/Eu vou...” Para onde, José?

Obrigado alunos e professores do Liberato. Obrigado ao Sarandi.

 

 

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