Da fome no Brasil aos nanocontos

Da fome no Brasil aos nanocontos

Narrativas do desespero

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Sobre a fome

 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou o resultado da pesquisa “Orçamentos Familiares” com dados de 2017 e 2018. A fome tem cor e gênero no Brasil: mulheres, negros e pardos estão mais propensos a não ter o que comer. Crianças ainda vão para a cama neste país tropical de barriga vazia. Adultos, para alimentar seus rebentos, fecham a boca. O quadro é aterrador: mais de dez milhões de pessoas padecem com a chamada insegurança alimentar. Os números têm essa mania de contrariar discursos ufanistas. O relatório atinge o governo de Michel Temer, aquele que saiu de cena se orgulhando de ter “arrumado a casa” e posto “o país nos trilhos”.

      A fome não gosta de negros, de pardos e de mulheres? Por que ela não implica do mesmo modo com homens brancos? A fome tem ideologia. É racista e machista. Não gosta tampouco de lares sustentados por mulheres sozinhas. A verdadeira ideologia de gênero no Brasil é a fome. Uma das cenas mais chocante que vi nos últimos tempos, entre tantas situações devastadoras deste ano da peste, foi a de uma menininha dizendo na televisão que muitas vezes vai dormir com fome por não ter a família dinheiro nem para comprar pão. Essa declaração é de agora. Tem a força de um tapa na cara. Dá para ouvir o estalo.

      Segundo o IBGE, em cinco anos, mais três milhões entraram no mapa da insegurança alimentar, o que significa “não ter acesso à alimentação regular básica”. Um aumento de 43,7%. Há mais fome na zona rural. O passado ronda o país do futuro. Dá para imaginar que a situação melhorou? Em tempos de pandemia, queimadas, desmatamento, queda do PIB, desemprego e necessidade de auxílio emergencial, o papel do Estado cresce. Até os defensores do Estado mínimo sabem que agora só a intervenção bem planejada salva a lavoura e vidas. Prorrogar a ajuda para os mais vulneráveis mereceria entrar na constituição.

      A fome, assim como o racismo, é uma questão estrutural que se oculta e explicita conforme a vontade de olhar ou de não ver os seus efeitos devastadores. Milton Santos, um dos maiores estudiosos desse assunto no Brasil, escreveu: “Criam desigualdades e, paralelamente, necessidades, porque não há satisfação para todos. Não é que a produção necessária seja globalmente impossível. Mas o que é produzido – necessária ou desnecessariamente – é desigualmente distribuído. Daí a sensação e, depois, a consciência da escassez: aquilo que falta a mim, mas que o outro mais bem situado na sociedade possui”. Será que um dia haverá vontade política real de fazer uma distribuição melhor?

Fica uma modesta e inédita sugestão: taxar grandes fortunas e dividendos. Por exemplo, cobrar mais dos bancos, esses mastodontes que ganham babilônias e dão pouco retorno à sociedade. A reforma tributária em tramitação em Brasília devia dar esse passo histórico. Podíamos diminuir nossa farta produção de jabuticabas adotando, como a melhor parte do mundo desenvolvido, uma tributação menos regressiva e menos centrada no consumo. Sem querer abusar, fica a dica. Valeu!

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Pão e pedra

 

      Camille du Pont era uma mulher bonita e melancólica. Aos 23 anos, tinha quatro filhos e nenhum marido. Quando a revolução tomou as ruas, no calor de julho, deixou-se levar pela massa. Amanheceu numa praça no meio de homens desconhecidos. Um deles, que lhe pareceu belo e triste, propôs-lhe fazer sexo em troca de um pedaço de pão.

– Pelo prazer – ela respondeu.

      Foi chamada de puta. Fugiu. Perseguida, já em casa, protegeu os filhos das agressões que choviam como granizo. Morreu ao meio-dia.

      Foi chamada de santa prostituta pelos que pretendiam lhe fazer justiça. O homem com quem se deitou na praça atirou a última pedra.

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Questão de disciplina

 

      Jean Garnier era revolucionário desde os 13 anos de idade por influência do avô, um homem de espírito indomável e passado desconhecido, mas muito comentado. Jean odiava a nobreza por intuição e por ter lido Rousseau. Tinha visto os irmãos virem ao mundo e se convencido de que todos nascem iguais. Quando tudo aconteceu, Garnier colocou-se na linha de frente. Marchou com a massa, desafiou as autoridades, propôs que construíssem barricadas, insultou os nobres. Ninguém tinha tanto talento quanto ele para ofender a nobreza. No seu ímpeto, chocou-se com o chefe da revolução no seu bairro distante. Foi transpassado pela espada do outro ao cair de uma tarde luminosa. Diante da perplexidade dos companheiros, o assassino explicou:

– Ganhamos todos. Ele não tinha disciplina para ser revolucionário.

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Terra e liberdade

 

      Ramón Merladet era filho de um estancieiro branco com uma escrava, que morreu ao dar-lhe à luz. Adolescente, incorporou-se às tropas de Artigas. Queria pelear. Aprendeu tudo sobre surpresas, retiradas e guerrilhas. Por ter estado muito doente, não participou da batalha de Tacuarembó, na qual seu chefe foi derrotado, tendo de se refugiar no Paraguai. Quando perguntavam a Ramón, a quem só chamavam de Mestiço, o que fazia numa guerra da qual podia não participar, ele respondia sem a menor hesitação no seu espanhol de jovem taciturno:

– Honro a memória da minha mãe.

      Aos que não se contentavam com a resposta, Ramón concedia mais uma vez frase antes de se escafeder entre homens, cavalos e armas:

– Me contaram que ela só queria terra e liberdade.

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      Leôncio Real não tinha serventia. Era o que todos diziam desse homem pálido, magro e sorridente. Aos 31 anos, sem nunca ter saído do seu vilarejo natal encravado no sul do país, encontrou um violino. Aprendeu a tocar como se a música jorrasse feito um milagre. Então se encheu de esperança de ser valorizado. Tocou na praça num domingo:

– Sujeito inútil – sentenciou o dono do lugar.

– Para que serve música? – emendou o seu capataz.

 


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