De volta para casa

De volta para casa

Crônica sobre a relação com as origens

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      Tem dias em que a letra de uma canção ressurge do passado distante e fica martelando na cabeça da gente. Acordei no meio da noite ouvindo Belchior cantar “gente da minha rua como eu andei distante”. Esse fragmento faz parte de um clássico do cantor e compositor, “Tudo outra vez”. Acho bom tudo o que Belchior fez. Dependendo do momento da minha vida, elejo uma das suas músicas como a melhor de todas. Já foi assim com “À palo seco”, “Paralelas”, “Galos, noites e quintais”, “Como nossos pais” e, claro, “Tudo outra vez”, que me domina atualmente.

 

      Dois pedaços dessa letra não param de rodar na minha mente: “Há tempo, muito tempo/que eu estou/Longe de casa” e o já citado “gente da minha rua como eu andei distante”. É a sensação que tenho, de ter colocado o pé na estrada muito jovem, ter andado por aí, ter batalhado muito e me distanciado, sem querer nem perceber, da gente da minha rua. O coronavírus me trouxe de volta para casa. Eu poderia me deter noutra parte de “tudo outra vez”, quando Belchior canta “aquele amigo que embarcou comigo”. O cara já teria se mandado, voltado para o seu lugar. Eu me identifico. Um grande amigo, com quem parti, já retornou. Será que eu farei também, um dia, o caminho de volta? Retornarei às origens?

      Tive a alegria de conhecer Belchior quando ele e sua última mulher me procuraram em Porto Alegre. Até hoje me pergunto o que o levou a andar por aí errante até morrer em Santa Cruz do Sul. Acho que a explicação se encontra nas letras que escreveu desde o começo. Em “À palo seco” ele diz que se desesperava enquanto o outro sonhava. Belchior seria sempre um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e sem amigos importantes. Mas com uma legião de admiradores como eu. Ele não voltou para casa. Morreu distante da gente da sua rua. Ninguém retratou o imaginário da minha geração, ou da fração da minha geração da qual eu faço parte, como ele. Queríamos, ao mesmo tempo, ficar e partir. Sumimos no mundo levando infância e adolescência no coração.

      O assunto aqui, contudo, não é o Belchior, mas esse sentimento de extravio e essa culpa de ter estado distante mesmo sem um afastamento efetivo. Há pessoas que vivem bem onde estão e jamais desenvolvem qualquer tipo de nostalgia ou de inadequação ao local habitado. Outros, sempre se sentem deslocados. Existem os que conseguem gostar de onde vivem e experimentar concomitantemente um desejo de regresso a um ponto mítico real ou irreal, idealizado ou fictício. Estou nessa categoria. Acredito que muita gente faz parte dessa tribo. À medida que o tempo passa, com a velhice batendo à porta, essa sensação se aguça muito.

      Num registro mais popular e mais romântico, mas não menos poético e pertinente, Roberto Carlos, em “O portão”, trata do mesmo tema: “Eu voltei agora pra ficar/Porque aqui, aqui é meu lugar/Eu voltei pras coisas que eu deixei...” Durante algum tempo o que se quer é esse reencontro com um passado intocado: “Tudo estava igual como era antes/Quase nada se modificou/Acho que só eu mesmo mudei”. Por fim, há um desejo puro de estar novamente com a gente da nossa rua. Sempre.

 

 


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