Defeito de memória

Defeito de memória

Um homem que não lembrava da democracia

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      Jorge Diniz era um homem de muitos negócios. Vestia-se com sobriedade. Deixo ao leitor, que deve participar da construção de qualquer narrativa para não se sentir excluído nem protestar contra a onipotência do autor, a tarefa de imaginar, ou até descrever no seu computador, essa sobriedade do vestuário. Não se pode mais entregar tudo pronto. Diniz andava pelos 60 anos. Há autores que descrevem essa idade com alguma condescendência. Não duvido que algum começasse este conto, pois é de conto que se trata, embora certos contos pareçam crônicas e certas crônicas tenham tudo de conto, desta forma: o velho Jorge Diniz era um homem de muitos negócios. Não me oponho. Tampouco aplaudo. A noção de velhice varia com a idade de quem escreve.

      Vamos ao que talvez interesse: Diniz era irônico. Um amigo enviou-lhe um bilhete (esta história se passa antes do WhatsApp) com estas palavras: “Muito boa a tua intervenção na reunião da Câmara de Comércio. Eu te prefiro como analista de mercado do que como gestor”. Diniz respondeu: “Bravo. Bem jogado. Cheguei a achar que fosse um elogio”. Esse era o homem. O que o transforma em personagem de literatura? Um defeito de memória, mal que o levou a encontrar muitos especialistas e a não achar respostas para o seu problema. Prezava a democracia, mas não conseguia se lembrar, nas situações concretas, de como aplicá-la. Neste ponto, o leitor, que quase sempre é melhor crítico literário do que escritor, exclama: “Isso não é verossímil”.

      Verossímil, se essa leitura não adulterar Aristóteles nem parecer pomposa num texto de entretenimento, é o que, não sendo, poderia ter sido. Como narrador, função que me atribuí sem consultar quem quer que seja, atrevo-me a afirmar: a vida não é verossímil. Esse é o meu axioma. O único que faço questão de admitir. Sem contar a minha certeza de que a mesóclise precede o golpe. Quem preferir a verossimilhança à verdade pode parar agora e ir assistir a uma sessão parlamentar na TV Senado. Fica, portanto, diagnosticado: Jorge Diniz padecia desse mal pouco estudado, a incapacidade de lembrar na prática o conceito de democracia. É uma doença. Os seus sintomas são perceptíveis e duros.

      Por causa dessa doença, Jorge Diniz apoiou o regime de Augusto Pinochet no Chile. Quando lhe falavam em tortura, indignava-se. Quando lhe comentavam sobre repressão, censura, desaparecimentos e execuções de opositores ao regime, ficava fora de si. Em teoria, tudo isso lhe era inaceitável. Na prática, não via as conexões. Sofria, na verdade, de uma dificuldade de associação das ideias aos fatos. Talvez por isso iniciasse quase todas as suas frases com um defensivo “em tese”.

Uma cura – Um pesquisador, leitor de Machado de Assis, levantou a hipótese de que Diniz, a exemplo do personagem de “O lapso”, poderia sofrer desse tipo de esquecimento singular: o apagamento na memória de uma noção básica e necessária ao bom funcionamento do cotidiano. A criatura de Machado de Assis não se lembrava do conceito de pagamento. Por essa razão, embora fosse rico, devia para todo mundo. Jorge Diniz não devia. Salvo para o governo federal. Isso não era considerado dívida, mas operações de crédito com vistas ao desenvolvimento do país. Nesse sentido, era uma obrigação cívica. Dever era um dever. Se Diniz começava cada frase com o seu “em tese”, terminava seus raciocínios com um “segundo os indicadores...” Era um alento para muitos ouvir um homem tão metódico, previsível, preciso, quase enfadonho. Bem, não se pode ser previsível e divertido. Enfim, tudo ia bem, salvo o seu mal.

      Acontece que ele tinha crises de consciência. Já ouço o leitor, de novo, berrando: “Inverossímil”. Não quero atribuir essa segunda observação a um vezo ideológico. Não se critica o leitor. Posso testemunhar em favor de Jorge Diniz. Embora raros e pouco estudados, houve casos como o dele. Diniz era um homem reto. Nas situações extremas escolhia justamente o caminho mais curto e reto. Só por isso foi contra as Diretas Já. Achava que o país ainda não estava pronto para eleger o presidente da República. Não que fosse contra a democracia. Ao contrário, era totalmente a favor. No momento certo. Aos que o questionavam, explicava: “Não se deve confundir liberdade com libertinagem”. Dizia isso e fica muito sério. Era grave. Democrata fervoroso, apoiou todas as atitudes antidemocráticas do seu tempo.

      Jorge Diniz foi um homem elegante. Não havia, nesse ponto, incongruência entre sua teoria e sua prática. Nenhum tratamento surtiu, no entanto, efeito contra o sofrimento que o afligia. Durante meses, parecia curado. Quando uma situação concreta se apresentava, vinha a recaída. Nos discursos, ele apresentava sensível melhora. Nos atos dos quais a vida não o dispensava, tinha crises agudas. Dizia com satisfação: “Em tese, estou bem”. Nos surtos, balbuciava: “Os indicadores...” Essa contradição o torturava. Deixo ao leitor o trabalho de detalhar essa tortura. Podemos assinar o conto juntos.


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