Democracia segundo Lipovetsky

Democracia segundo Lipovetsky

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Caderno de Sábado

Rumo a uma democracia securitária

Gilles Lipovetsky

Filósofo francês responde sobre o papel central das emoções nas escolhas eleitorais e prevê uma busca crescente por segurança

      O papel das emoções tornou-se primordial nas escolhas políticas na medida em que as grandes ideologias perderam o sentido como visões de mundo. Os programas eleitorais perderam importância em relação à imagem dos líderes em disputa. A dimensão emocional aparece ligada à imagem como indicativo da personalidade de alguém. Perdemos a confiança em plataformas e promessas. Os partidos políticos atravessam uma etapa de descrédito quase total. As instituições em geral, especialmente aquelas que representam os poderes, estão em baixa.

Estamos presenciando o surgimento de um novo processo na vida das sociedades democráticas. Os cidadãos não votam mais por crença ou adesão a um partido, mas contra alguma coisa. Esse é um ponto capital. Durante muito tempo, na época das grandes ideologias, votava-se de maneira quase mecânica: os operários votavam no Partido Comunista ou na esquerda; a burguesia, na direita. Eram votos de classe social. Hoje, não se tem mais essa nitidez. A falta de confiança e de definição leva a que os partidos não se sustentem no poder. Predomina o voto contra. Estado permanente de rejeição. Por que ficou assim?

Esse é o problema central. Vários elementos ajudam a explicar essa transformação. O primeiro, como já indiquei, é o ocaso das grandes ideologias, que Jean-François Lyotard chamava de grandes narrativas de legitimação. O segundo, de enorme relevância, é a nova força do capitalismo e do mercado em relação ao Estado. O mercado faz a lei. O Estado já não contaria tanto. Isso diminui a importância da política. O terceiro fator é o fracasso de muitos Estados para resolver problemas fundamentais como o desemprego de massa. Quarto aspecto: a corrupção. Vota-se contra a corrupção sem necessariamente aderir profundamente à ideologia do escolhido. As frases mais ouvida são: “Vamos tentar outra coisa”, “vamos dar uma chance”, “vamos experimentar”. Há nisso o perigo de se dar um cheque em branco a desconhecidos pelo simples fato de que talvez venham a fazer melhor que os anteriores. Quinto fator, válido para a Europa, o problema dos imigrantes, um fluxo de refugiados que cria insegurança quanto à identidade através do medo de uma invasão colossal de estrangeiros.

Recentemente, na Baviera, na Alemanha, partidos de extrema-direita alcançaram resultados eleitorais expressivos. Obtiveram cadeiras no parlamento. Precisamos sempre pensar no que isso significa no contexto de um país como a Alemanha, onde, durante 50 anos, a extrema-direita não existiu. Meu primeiro livro foi “A era do vazio”, que tratava da perda de certas referências. Hoje, o vazio é de segurança. Vivemos a Era da Insegurança. A nossa era é evidentemente hedonista, centrada no lazer, na mídia, nas férias, no turismo, no consumismo, nos games, mas a insegurança faz sombra e preocupa. Nessa cultura, os indivíduos não se sentem mais protegidos pelo Estado.

Essa insegurança tem diversas origens. Existe a insegurança provocada pela globalização. Ela é muito forte nos Estados Unidos. Não foram apenas os ricos que votaram em Donald Trump. Foram também pobres e integrantes da classe média operária. Pessoas com medo. De quê? De serem rebaixadas socialmente. Medo de perder o status adquirido. O voto populista existe inclusive onde não há desemprego. Não é, portanto, somente o desemprego que explica a mutação política e social em voga. A extrema-direita cresceu num país tolerante e igualitário como a Suécia. Há uma insegurança identitária, cultural, alimentada pelos fanatismos e pelo terrorismo. Na raiz dessa onda de protesto está a necessidade de que o Estado proteja as pessoas dos perigos.

Eis o paradoxo: quer-se menos Estado em economia e mais Estado na proteção aos indivíduos. As pessoas sentem-se abandonadas em bairros sensíveis dominados por máfias de traficantes. Não se aceita mais que o Estado gaste em coisas supérfluas enquanto falta saúde, educação e transportes públicos de qualidade. É forte a percepção de que os políticos não cuidam dos interesses fundamentais da população e só cuidam dos seus jogos de poder e do necessário à reeleição. Na época hipermoderna em que vivemos, a necessidade essencial é de segurança. A Europa teme o terrorismo. México e Brasil, o cotidiano.

Nessa insegurança generalizada há quem defenda um Estado forte. Alexis de Tocqueville falou de situação semelhante na sua época. O medo favorece a demanda de mecanismos que restringem a liberdade em nome da segurança. Antes, renunciava-se à liberdade pela igualdade. Agora, pela segurança. Em certos países, diante da insegurança crescente, não falta quem reclame um Estado policial. O desejo de ordem pode resultar em restrição à democracia. O ultraliberalismo e o poder do mercado contribuem para a sensação de que não há proteção. Surge a figura do Estado “iliberal”, como saída de emergência para o medo, ao qual se dá poderes contrários às garantias fundamentais para impor a ordem. O Estado reduzido a defensor da ordem e da vida.

Se não se tem a ameaça do totalitarismo, nuvem que sempre paira sobre a história, tem-se a ameaça do surgimento de democracias “iliberais”, ignorando liberdades constitucionais, separação de poderes, autonomia da justiça, tudo em nome da segurança, ampliando poderes não atribuídos pelas urnas. Vai-se da democracia plena à democracia restrita. O liberalismo econômico domina. Mas não consegue dar segurança a todos. A dimensão ética torna-se questão central.

Nesse campo de paradoxos a demanda por honestidade vira um ponto cardeal. Na França, na eleição que levou Emmanuel Macron ao poder, o candidato François Fillon, que liderava as pesquisas, foi liquidado por uma denúncia bastante simples, a de ter arranjado um emprego público fictício para a esposa. Ele foi acusado por isso de ser desonesto. Perdeu a eleição. A ruínas das grandes ideologias abriu caminho para o desejo de honestidade acima de tudo como aspiração principal. Antes de ser competente, um líder deve ser honesto. O novo paradigma da política é de ordem moral: paradigma da honestidade.

O eleitor pode perdoar a incompetência, mas não a desonestidade. De esquerda ou de direita, não importa, espera-se de um político que seja honesto. A sedução do político não está necessariamente na sua beleza ou na sua maneira de falar com o público. Está principalmente na capacidade de apresentar-se como novo e principalmente como autêntico. O que mais seduz num político no entender de grande parte da população: a sinceridade. Exclama-se: “Ele diz o que pensa!” Mesmo, para alguns, quando o que é dito choca, a sinceridade ganha pontos.

Donald Trump, com sua grosseria, seduziu pela autenticidade. Um político ascende quando faz o que diz e diz o que pensa. Quando a percepção geral é de desconfiança sobre a desonestidade dos políticos, a honestidade transforma-se num capital fantástico. A imagem de sinceridade seduz e reforça o capital inicial. A contradição é que essa sinceridade pode ser antipática e até mesmo violenta. A explicitação de uma personalidade desagradável pode funcionar como confirmação da sua sinceridade, um selo de autenticidade a toda prova. Na falta de ideologia forte, a autenticidade vira um atributo maior.

A democracia está ameaçada, mas não vai morrer. Não estamos na situação europeia experimentada entre as duas guerras mundiais. Há tentação de Estado autoritário no ar, mas a maioria preza pela liberdade. Os Estados precisam ouvir o grito que pede segurança. Não é possível que partes de cidades fiquem nas mãos de criminosos. O território nacional precisa ser reconquistado pelo Estado de Direito. Temos um desafio: favorecer a liberdade empresarial sem extinguir direitos sociais. A lei precisa garantir um futuro para todos. O investimento em Educação terá de ser realmente a prioridade geral. A democracia não é apenas o direito de voto. É também o direito à dignidade e a um futuro seja qual for o ponto de partida de cada um.

 

 

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