Democracia, um mal-entendido no Brasil

Democracia, um mal-entendido no Brasil

Raízes de um país pouco republicano

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      Na adolescência, passava férias de julho na biblioteca da chácara que meu pai cuidava em Palomas. Guardei dessa época uma edição em dois volumes de “Casa Grande & Senzala”. Um pequeno deslize ético. Estudante em Porto Alegre varava as noites lendo o que aparecesse. Um livro a cada 24 horas. Dormia de manhã. A pandemia me devolveu inteiramente ao meu habitat natural: passo os dias entre meus livros. Ouso dizer, com algum exagero, na minha biblioteca. Releio muito. Nos últimos dias, a trilogia da formação do Brasil: o já citado “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, e “História econômica do Brasil”, de Caio Prado Jr. Leituras das horas vagas. Nas outras, estudo Machado de Assis.

      O fato de que um ministro do STF preside o TSE e que o presidente do Supremo Tribunal Federal também comanda o CNJ sempre me faz pensar numa citação feita por Sérgio Buarque sobre o Brasil de antanho: “Ocupar cinco ou seis cargos ao mesmo tempo e não exercer nenhuma, é coisa nada rara”. Na minha ingenuidade, achava que integrar o STF exigia 24 horas diárias de dedicação total. Não é assim. Sobra tempo para outras funções. Eu não conseguiria. Certamente por isso não sou indicado para tão nobre função. Sérgio Buarque falava de defeitos que por certo desapareceram: “Mais de cem estudantes conseguiam colar grau na Universidade de Coimbra todos os anos, a fim de obterem empregos públicos, sem nunca terem estado em Coimbra”. No século XVII.

      Fico brincando com essas frases, citações de “A arte de furtar” ou coleções de bizarrices. Por exemplo: “A democracia no Brasil foi sempre um mal-entendido”. Penso nisso quando ouço certas manifestações oficiais. Sérgio Buarque explicou a instalação da democracia no Brasil: “Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas”. Como aqui não havia aristocratas nem burgueses, a democracia foi trazida como um adorno de modernidade, que ainda incomoda e nem sempre se ajusta aos pés dos donos do poder. Os “pedagogos da prosperidade”, a expressão está em “Raízes do Brasil”, categoria à qual Paulo Guedes certamente pertence, volta e meia se atrapalham com esse vaso na sala e não sabem o que fazer dele.

      O presidente da República também se sente amarrado por esses freios e contrapesos democráticos que o impedem de expandir-se ou de mandar um cabo e um soldado fecharam a suprema corte. Foi assim com Deodoro da Fonseca na sequência do seu golpe republicano. Tudo isso por causa de um pequeno lapso de tempo: a proclamação da República ainda não se completou. O povo, na época, não sabia o que estava acontecendo. Assim que for informado talvez tome providências. Enquanto isso não acontece a elite fura teto e acumula cargos. Pelo nosso bem. Quando precisa, suspende a democracia por um quarto de século. Isso tudo porque “temos horror às hierarquias” e às leis.

O deputado Luís de Miranda começa a mostrar que a democracia no Brasil continua pouco republicana. Que mal-entendido.


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