Depois dos cem mil mortos

Depois dos cem mil mortos

Brasil acostuma-se ao horror do coronavírus

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      Atingimos e ultrapassamos a lamentável marca de cem mil mortos por Covid-19 no Brasil. Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas com testes e estrutura hospitalar. Não somos vítimas preferenciais de uma fatalidade. Somos, de certa forma, o que decidimos ser ou que não tomamos providências para evitar. Por que a China, onde a tragédia começou, tem tão poucos mortos na comparação conosco? Por esconder dados ou por ter adotado um isolamento social extremo? Por que tantos países conseguiram derrubar a curva de óbitos? Por que estamos, ao lado dos Estados Unidos, nos mais altos degraus do mais triste pódio que se possa ter inventado? Será que o negacionismo explícito dos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump tem a ver, de algum modo, com esses números aterradores ou é só coincidência?

      Em março deste ano, quando tudo começou a mudar, falar em cem mil mortos era visto por alguns como alarmismo, terrorismo, até desconhecimento da dinâmica das pandemias. Onde andarão os que previam menos mortos de Covid-19 do que por epidemias anteriores de baixa letalidade? Admitem o erro de previsão ou sofismam? Não seria o caso de o presidente da República pedir perdão de joelhos aos brasileiros, especialmente aos enlutados, por um dia ter chamado de “gripezinha” essa doença capaz de matar em poucos meses cem mil pessoas? Quantas cidades deste país têm uma população desse tamanho? É como se todos os habitantes de cidades que amamos, ou onde nascemos, tivessem desaparecido, ceifados por um vírus maldito. Enquanto isso, sem baixar a média diária nacional de mil mortos, tudo vai sendo reaberto.

      Como o vírus não se decide a ir embora, pretende-se “cancelá-lo” por decreto e salve-se quem puder. Enquanto a vacina não chega, na medida em que se acredita nela e na capacidade da ciência de disponibilizá-la, digamos, no começo de 2021, não seria o caso de fechar, em lugar de abrir, com o Estado continuando a amparar os vulneráveis e dando suporte consistente a empresas em crises? É fácil aceitar flexibilização com números de mortes em queda. Como entender o afrouxamento de restrições quando as mortes se mantém estáveis, num interminável platô, ou crescem em alguns Estados? Qual é a lógica? Há quem sustente que isolamento não resolve. O que fizeram os países que conseguiram algum êxito contra o terrível novo coronavírus? Apegaram-se a zinco, cloroquina e ivermectina ou a isolamento e até lockdown?

      Primeiro morreu uma pessoa e acreditamos que tudo logo passariam. Depois, morreu mais uma, mais outra, muitas outras, até passarmos de cem mil mortos. O primeiro que morreu era um desconhecido para a maioria de nós, mas alguém importante para a sua família. Depois, logo depois, começaram a morrer conhecidos, amigos, parentes, colegas, gente tão próxima, que ficamos apavorados. Alguns, contudo, não se assustaram, não se comoveram e continuaram a viver “normalmente”. Quantos terão ainda de morrer para que se tome consciência de que estamos diante de uma catástrofe existencial?


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