Diário da quarentena (11): meus lugares

Diário da quarentena (11): meus lugares

Meus jardins cotidianos

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  Chegará a hora de falar de todos os que têm me ajudado nesta travessia inesperada e inequecível pelo que tem de angustiante. Olho pela janela de casa e me emociono com a beleza de certos dias como o de hoje, quara-feira. Parecem pintados para nos convencer da força da natureza. Fui tomado por uma obsessão reflexiva sobre como tenho vivido. Faço o que gosto, com entrega e paixão, mas quantas vezes deixo de caminhar no parque para trabalhar mais um pouco. Com o passar dos anos, fui menos a bares, joguei menos conversar “fora” com os amigos, tornei-me sempre mais produtivo e eficaz. De repente, comecei a pensar que os sorrisos, os abraços, os beijos e os apertos de mão contam mais do que tudo.

 

      Passei a pensar nos “meus”: a Cláudia, os familiares, os amigos, os colegas. Eles vêm inundando meus contatos com manifestações de carinho. Eu os amo. Na vida, tenho sido de poucos declarações derramadas. Fui aprendendo a ser discreto. Eu não era assim. Na adolescência, fazia o gênero rebelde sincero. Falava tudo, brigava muito. A idade adulta me ensinou a temperar, segurar, ponderar, calcular. No fundo de mim, porém, existe um ser afetivo que pode polemizar por escrito, mas odeia ser indelicado com quem quer seja ou levantar a voz. Sou daqueles que ficam uma semana remoendo uma possível ofensa sem querer, uma frase ambígua, uma grosseria. Nestes dias de medo, tenho pensando em cada coisa simples que eu não fiz, em cada abraço que eu não dei, em cada sorriso que eu não retribuí, em cada afago que eu poderia ter feito.

      Quantos amigos feitos ao longo do tempo, alguns com os quais o contato parecia perdido, surgiram do passado para me cobrir de carinho e de preocupações diárias tão sinceras! Confesso que tenho ido às lágrimas. Contarei mais tarde como tudo começou e como tenho vivido tudo isso. Certamente não serei mais o mesmo. Muitas coisas que me pareciam essenciais agora me surgem como pequenas vaidades. Eu nunca havia pensado efetivamente na morte. É um choque de realidade. O sol brilha enquanto releio este texto e eu me digo: como eu amo esta cidade, este bairro, este Estado, as pessoas com quem convivo, estes lugares.

      Ao voltar para casa, no sábado, ao longo da avenida Ipiranga, cada rua parecia me sorrir. Tenho andado por esses lugares nos últimos 40 anos e sinto que fazem parte de mim. É por isso que eu nunca iria embora viver no exterior. Preciso de cada cantinho desta cidade para existir. Um naco do parque da Redenção que capturo pela janela me enche de esperança e de ternura. A vida pulsa e eu quero pulsar com ela. A vida dança e eu quero dançar com ela. Quando eu era guri, dançava nos bailes da campanha. Quando foi que parei de dançar e me deixei endurecer?

      Já não sonho com os grandes desbravamentos nem com as maiores conquistas. Agora, quero cultivar o jardim do nosso cotidiano, colher pequenos gestos, semear lírios, rosas, dálias, amor, simpatia e essa pequena capacidade de ser pessoa, ou seja, ser alguém de sentimentos, num universo tão volátil. Se viver é muito perigoso, não podemos perder um segundo de amar. Amar é estar aberto ao sopro diário da vida.

Ao sol que nos banha com a sua perfeição.


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