Diário da quarentena (13): por que eu?

Diário da quarentena (13): por que eu?

Quando a gente se angustia e questiona

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Kierkegaard é o grande filósofo da angústia. Teve uma vida atormentada. Pensou minuciosamente o que em certas ocasiões nos assalta. Quem não se depara repentinamente com reflexões sobre a nossa finitude, a nossa insignificância, a nossa pequenez diante de um vírus? Neste mundo corrido e materialista, perdemos bastante a capacidade de filosofar como reflexão cotidiana sobre a nossa existência. No fundo, vamos comprando coisas, quando podemos, e driblando a perplexidade.

O grande e implacável Kierkegaard escreveu: “A angústia pode ser comparada à vertigem. Quando o olhar imerge num abismo, existe uma vertigem, que nos chega tanto do olhar como do abismo, visto que não seria impossível deixar de encarar. Esta é a angústia, vertigem da liberdade, que surge quando, ao desejar, o espírito, estabelecer a síntese, a liberdade imerge o olhar no abismo das suas possibilidades e agarra-se à finitude para não soçobrar”. O abismo cresce quando não há escolha e é preciso agarrar-se na borda da finitude para não soçobrar.

É quando a gente se pergunta infantilmente: por que eu? O espírito não deixa de se culpar, de procurar uma explicação racionalizante, de tentar reduzir o aleatório ao causal, de buscar uma explicação. O que fiz de errado? Como foi que eu não previ? Eu devia ter tomado mais cuidado. Fui relapso. Todas as coisas invadem o espaço da angústia e tentam povoar o abismo como formulações vazias. Não toleramos o aleatório, não aceitamos que o destino seja tão errático, rechaçamos a lógica complexa das probabilidades sempre em jogo. A angústia surge como pista: estamos sempre a um passo do abismo.

A grande lição não é se desesperar, mas aprender a aproveitar o caminho enquanto ele oferece oportunidades. Filosofar não é feio. Nem pedante. Significa pensar em si e nas suas circunstâncias existenciais. Perguntar: o que eu posso fazer? Como estou fazendo? O que posso esperar? É preciso encontrar caminhos de serenidade. A fé é um deles. A sabedoria, como capacidade de pensar a existência, é outro. O pior dos caminhos é o da inconsciência. Por algum tempo ele se mostra satisfatório. O problema é quando surge o acidente de percurso. Para Kierkegaard o homem carrega o fardo da solidão. Há, porém, dois pontos de fuga: o amor e a amizade. Na família, juntam-se dois tipos singulares de amor e amizade. É nela que escapamos do isolamento.

Como se pode custar a entender coisas tão simples? Certamente o homem dito moderno sonhou com uma emancipação plena que faria da solidão um trunfo. Nada o pararia diante da sua vontade de dominação. Não é essa a grande característica da modernidade: imaginar-se senhor da razão e da natureza? Acreditar-se no comando e no autocomando?  A natureza mostra todos os dias quem tem as rédeas. A razão, sem dúvida alguma, ajuda-nos a iluminar caminhos, mas a sua luz ainda não conseguiu iluminar os confins do nosso inconsciente. Se viver é um mistério, a luz no fim do túnel se acende estendendo a mão, estendendo as mãos aos outros. Como se sabe, não é possível ser feliz sozinho.


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