Diário da quarentena (14): Cláudia

Diário da quarentena (14): Cláudia

Cenas da vida familiar em isolamento

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      Faz muito tempo que eu descobri a verdade: nada sou sem a Cláudia. Um cronista nada deve esconder dos seus leitores. Traduzir a subjetividade em palavras compreensíveis é a sua função. É isso. Nesta crise, fico impressionado com a força que emana da Cláudia. Ela é uma fortaleza, incansável, otimista, proibindo-me de fraquejar. Aqui em casa temos nossos pequenos recantos. Fico na minha biblioteca, que é separada por uma porta de vidro de um pequeno jardim interno, uma peça que adaptamos para Cláudia cultivar suas plantas. Nestes dias, ela me instala em minha poltrona vermelha e fica do outro lado da vidraça, entre as suas flores, me cuidando. Nada escapa ao seu olhar atento.

 

      Olho os seus movimentos e penso nas figuras femininas dos quadros de um dos meus pintores favoritos, o holandês Vermeer. Ninguém pintou cenas cotidianas como ele. Eram quase fotografias. Cláudia me dá bronca quando bebo pouca água. Esse é um dos meus problemas mais graves. Nunca sinto sede. Já tive problema renal por causa disso. Minha garganta virou um deserto de tanta secura. Preciso mudar tantos hábitos. Essas coisas simples podem ser as mais complicadas. Para mim, se o organismo não pedia água, não havia razão para ficar me irrigando. Não é assim.

      Estou reaprendendo a comer. Durante alguns dias, fiquei com aversão a qualquer alimento sólido, especialmente salgado. Tive de me refugiar nos caldinhos, nos pastosos, nos sorvetes, em doses mínimas. É tão estranho ver o tempo passar e não sentir fome. Pior é ver que o tempo não passa. Homem apressado, típico representante da hipermodernidade, descobri repentinamente que teria de ficar parado. É uma experiência existencial singular, que exige grau de adaptação.

      Vermeer pintou poucos quadros, 39 no máximo, 35 reconhecidos, apenas dois com a sua assinatura. Se visse Cláudia se movimentando do outro lado da porta de vidro, sob o fundo verde das plantas, certamente pintaria mais um. Ele quase só pintava por encomenda. Eu pagaria para vê-lo imortalizar Cláudia nestas cenas cotidianas que parecem mágicas. O mais belo quadro de Vermeer é possivelmente “A ruela”. Mas não é menos comovente o seu “A leiteira”. O que eu vejo nesses quadros que me emociona? A singeleza ao mesmo tempo realista e impregnada de afeto.

      O cotidiano é onde vivemos. Nele, tudo é concreto, salvo as nossas inúteis abstrações. Há algo de extraordinário no ordinário (comum), nesse ambiente no qual nos encontramos mergulhados e que constitui a nossa atmosfera. Muitos só se interessam por cenas heroicas ou de ruptura, quadros de guerra ou revolução. Vermeer pintou a continuidade doce, a permanência, a fluência suave das horas. Olho a Cláudia do outro lado da porta de vidro e penso no que fizemos juntos nestes trinta anos. Juntos, construímos nossa biblioteca e nosso pequeno jardim, talvez a melhor metáfora da nossa relação. Eu queria ser Vermeer por um dia só para pintar a Cláudia no seu jardim. A esse meu único quadro eu daria como título “paisagem pintada com amor”.


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