Diário da quarentena (15): Tio Rapazinho

Diário da quarentena (15): Tio Rapazinho

Lembranças de um personagem peculiar

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      Nem sempre sei quem eu sou, mas nunca sou exatamente aquele que poderia ter sido ou que muitos imaginam que eu seja. Há quem me veja como um urbano. Mal sabem que minha alma é camponesa. Palomas nunca sai de mim. Nas paredes da minha biblioteca, pequenos quadros com animais me remetem a esse vínculo que não se desfaz. Amo cavalos. Ainda terei um sítio para receber amigos e curtir a natureza docemente. O meu lado urbano é uma casca fina, que se esfarela com facilidade. Todo o meu imaginário é feito de campos, arroios, matos e coxilhas ondulando.

      Há quem pense que sou indiferente às tradições do Rio Grande do Sul. Sou esquisito. Não tomo mate. Não uso bombacha. Mas sou um guri da campanha e para lá ainda quero voltar. Quero ter um pingo para dar uns passeios de manhãzinha. Quero ter um cusco que me siga nas caminhadas. Quero ter um capão de mato para me sentir novamente em casa. Sonho em sestear outra vez, como na minha infância, deitado sobre um pelego à sombra de um cinamomo. Não sei muito sobre como me tornei o que sou, mas sei que em algum momento a natureza entrou em mim para nunca mais sair. Sinto orgulho em encher o peito e dizer: sou da Fronteira.

      O meu imaginário musical afetivo está cheio de músicas de Teixeirinha, Gildo de Freitas e José Mendes. Nós éramos do povo, éramos o povo e esses artistas expressavam exatamente o que sentíamos. Estudei, viajei, mudei, mas nunca apaguei do coração as trovas do Gildo e do Teixeirinha, as canções tristes do José Mendes, a alegria dos gaúchos humildes ouvindo esses gigantes da nossa cultura gaúcha. Adolescente, eu ensaiava umas trovas e não me saía mal. Depois, em algum momento, fui ficando envergonhado, tímido, recolhido e não me atrevi mais a ser o gaúcho que continuo sendo. Sou, de certo modo, um deslocado, um errante, misturando coisas, unindo referências contraditórias. Os personagens mais simples da infância me povoam.

      Tio Rapazinho é um deles. Magro, pobre, ranzinza, era cheio de expressão sem qualquer sentido. Ia pelas fazendas e conseguia algum cavalo para puxar sua carroça, com a qual fazia pequenos trabalhos. Todo dia, no mesmo horário, ia até uma padaria no centro da cidade. Às vezes, só para comprar um quilo de bolacha. Aquilo era a sua vida, a sua missão. Alguns anos antes, desempenhara uma função mais rentável. Acompanhava até Porto Alegre, ou até Cacequi, os trens que partiam de Palomas carregados de gado. Desaparecia por alguns dias e voltava cheio de histórias. Era o seu mistério, a sua força, o seu manancial de vida.

      Por que falo do Tio Rapazinho? Não é a primeira vez que faço isso. Acontece que ainda me pego usando as suas expressões. Quando ele amanhecia com algum desconforto, algum mal-estar, o que a idade, embora não muito avançada, aumentava, acocorava-se na frente da casa do meu avô, onde funcionava um bar com mesa de sinuca, e exclamava choroso:

– Hoje, tô meio rorobado.

      Nunca soube de onde vinham as suas palavras e o que ele queria dizer exatamente com elas. Essa certamente vinha de jorobado, mas a gente nem imaginava isso. Falava uma linguagem peculiar, colorida, ao mesmo tempo seca e barroca. Nunca soube se teve amores, se teve sonhos ou se em algum momento sentiu-se bem no seu corpo esquálido. Nestes dias de preocupação, na solidão do meu isolamento, visitei cada personagem do meu passado. Cheguei a sonhar que me acocorava ao lado do Tio Rapazinho, que estranhava tanta proximidade, e dizia choroso:

– Tio, hoje tô meio rorobado.

      Ele me reprendia com a sua voz rascante, incomodado por ver uma palavra sua usada sem autorização. Olhava-me com firmeza e dizia:

– Onde se viu guri rorobado! Vai te afumentar.

      Não sei bem como a vida bifurca. Sei que me formei lendo Ciro Martins, Simões Lopes Neto, Darci Azambuja e Alcides Maya deitado dentro de uma velha carreta contemplando um laranjal. Vez ou outra, meu pai me chamava para ajudar numa lide. Eu ia de má vontade por ter de interromper a leitura. Ele ficava aborrecido. Depois, me dizia:

– Me conta essa história, vai!

      Eu contava. Ele ajeitava. Ninguém contava histórias com meu pai. Ele era o narrador espontâneo, divertido, dramático, fabuloso, imaginativo. Talvez eu nunca tenha lhe dito. Mas peguei gosto por histórias ouvindo seus “causos” na beira do fogo de galpão. Ele me fazia tremer de medo, vibrar, querer mais, ficar de boca aberta. Não sei muito de que barro é feito o imaginário dos homens embora tenha feito do estudo do imaginário uma profissão. Sei que cada um de nós é moldado por terras e águas que parecem vir do fundo do tempo, do nosso tempo, desse tempo afetivo que só nós conhecemos profundamente.

      Nos dias de hospital, revisitei meus atalhos, trilhas e caminhos. Encontrei na memória gente de quem eu andava esquecido. Quando me senti um pouco mais abatido, acocorei-me junto ao Tio Rapazinho e chorei:

– Tio, tô meio rorobado.

– Guri não fica rorabado. Vai te afumentar.


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