Diário da quarentena (16): da amizade

Diário da quarentena (16): da amizade

Afetos em tempos de crise

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      Tenho lido muito na vida as grandes obras de sabedoria. Cícero, por exemplo, concebeu uma obra-prima, De senectute, que pode ser lida em várias traduções para o português, entre as quais Saber envelhecer, seguido de Lélio, ou A Amizade (L&PM). Ninguém perde, nestes tempos cruéis, em ler esse pequeno grande livro. Velhice e amizade precisam andar de mãos dadas. A velhice pode ser o momento ideal para a amizade. A corrente de amizade que me envolveu nos últimos dias não só me comoveu como me fez pensar que o mundo é muito melhor do que se diz. Amizade baseia-se na “felicidade da partilha”, do compartilhamento.

      Quem dá, não perde. Quem ganha, não acumula. Divide. É um princípio de ganha-ganha. Só que não se ampara nessa palavra. Cícero era evidentemente bom de frases. Como esta: “A primeira lei da amizade consiste em pedir aos amigos coisas honestas, em fazer por eles coisas honestas. O amigo certo conhece-se nos momentos incertos”. Toda amizade é honesta, pois a própria ideia de amizade significa honestidade. A amizade é uma entrega de sentimentos que nada pede em troca, mas recebe. Quem deixa de recompensar com afeto a doçura de uma amizade?

      Talvez os mais exigentes considerem esta outra frase de Cícero um tanto piegas: “Tirar a amizade da vida é tirar o sol do universo”. Para mim, é uma afirmação perfeita. A vida sem amizade só pode ser um céu eternamente nublado. A amizade ilumina, aquece, abre caminho, conforta, dá esperanças, ampara, faz o impossível parecer possível e encanta. Como se poderia viver sem encantamento? Sem a mão que se estende na hora ruim? Sem a palavra que por ter sido dita faz crer no futuro?

      Nos últimos dias, aprendi um tratado inteiro sobre a amizade. Curso prático por whatsApp. Chorei e sorri enquanto lia cada mensagem. Creio ter ficado provado para mim o que Cícero sugere: “Não sei, se, com exceção da sabedoria, os deuses imortais outorgaram ao homem algo

melhor que a amizade”. A amizade é a mais pura sabedoria. Não é algo que se estude, aprenda formalmente ou se venda. Ainda bem. Por amizade se entende um encontro de corações generosos. Afinidades eletivas. A doença me deixou sensível, certamente mais propenso a perceber as nuanças da amizade, a força dos vínculos pessoais, a energia das trocas gratuitas. Sempre ouvi que se pode passar por um choque de percepção em situações graves. Só não sabia do imenso poder terapêutico do afeto.

      Quando tudo se acalmar, serei mais concreto. Estou numa vibe mais abstrata, curtindo cada palavra que recebi como um bálsamo. Escrevi um livro sobre a felicidade. De repente, fico sabendo que ser feliz é poder continuar com quem se ama. Olhar a pessoa amada e não pode tocá-la nem com a ponta dos dedos provoca uma gigantesca angústia. Saber, porém, que ela está ali, assim como outros estão virtualmente, faz a gente se agarrar na sela e aceitar os solavancos do destino. Um velho cientista italiano diz que devíamos ter-nos preparado para esta pandemia. Significa que que podemos nos preparar para a próxima.

 
 



 


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