Diário da quarentena (17): seremos os mesmos?

Diário da quarentena (17): seremos os mesmos?

Vamos mudar ou retomar o que sempre fomos?

publicidade

      Há muita especulação sobre o pós-pandemia. Ainda seremos os mesmos depois dessa tragédia planetária? Costumamos ser rápidos na afirmação de mutações definitivas. Depois do 11 de setembro 2001, com o cinematográfico atentado às torres gêmeas de Nova York, afirmou-se prontamente que o mundo nunca mais seria o mesmo depois daquela ferida no coração do poder. Não há evidências de que tenhamos realmente mudado. O coronavírus é diferente. Todos ficamos expostos aos ataques.

 

      Filósofos, economistas e psicólogos têm examinado cenários futuros. Cada um tenta confirmar as suas velhas teorias com os novos fatos. Dois grupos sobressaem nas previsões a partir dos próprios parâmetros. Luminares da esquerda garantem que desta vez o capitalismo agoniza. Teóricos das novas direitas sustentam que a oposição entre direita e esquerda caducou de vez. Uns aproveitam para denunciar os limites da tecnologia. Outros redescobrem os poderes da ciência. Em tempos de terraplanismo ideológico o saber volta a brilhar como o astro principal. Mas ainda seremos os mesmos depois do susto que nos atinge?

      Acho que a principal alteração tem a ver com uma pergunta que cada um de nós tem feito no seu isolamento: por que estamos vivendo assim? Melhor: por que temos vivido assim? O que fazer das metas, dos bônus, das posições conquistadas e dos jogos de poder? Houve uma época em que se apostava tudo na política. Sobreveio uma desconfiança absoluta no embate político. A ideologia tecnicista, expressão muito usada pelo sociólogo francês Dominique Wolton, tomou o lugar das utopias humanistas. A mais acabada expressão desse tecnicismo suspostamente neutro é a ideia de bancos centrais independentes. Volta e meia, no auge de alguma polêmica sobre questões essenciais como o papel do Estado nos transportes, alguém diz: “Precisamos tirar a política dessa questão, que é técnica”. Não preciso citar Martin Heidegger para lembrar que a essência da técnica não é técnica.

      Temos uma oportunidade de pensar outro futuro. Queremos continuar correndo freneticamente atrás da máquina, com a vida definida por algoritmos, ou diante da brevidade e da singularidade da vida, capaz de ser eliminada inesperadamente por um inimigo invisível, defenderemos outra maneira de estar no mundo, mais espiritual, mais fraterna, mais solidária e mais humana? O Estado não existe. É apenas a sociedade organizada por meio dos seus representantes. Vamos querer mais ou menos organização da sociedade? Vamos querer decidir mais ou menos como viveremos? Usaremos nossas mãos ou apostaremos em “mãos invisíveis” cujos interesses costumam ser bastante visíveis e nada universais?

      Se muitos fazem previsões, arrisco a minha: vamos buscar um modo de vida mais equilibrado, longe dos extremos, tentando conciliar ciência e política, liberdade e interesse social. Não podemos continuar alimentando um fosso separando privilegiados pela roleta da vida e deserdados pelo “azar” de nascer no lugar errado. A pandemia traz questionamentos: quem temos sido? Quem queremos ser? Como viver?


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895