Diário da quarentena (4)

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A MP do mal

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No domingo à noite, em meio aos panelaços que o fustigam, o presidente da República assinou a MP do Mal, a Medida Provisória que permitiria aos patrões não pagar salários a trabalhadores por quatro meses.

O vírus pareceu ameaça menor diante dessa crueldade.

A generosa MP previa um curso de capacitação online como contrapartida.

Bolsonaro foi obrigado a recuar na segunda-feira.

Enquanto isso, o twitter excluía um post de Olavo de Carvalho, o astrólogo fake, guru de bolsonarismo, dizendo que o coronavírus era uma armação.

O imbecil individual não perde oportunidade para demonstrar sua estupidez.

A cada noite, enquanto uns escutam música, Bolsonaro ouve uma orquestra de panelas, que dobram pelo seu governo de desastres e frases infelizes.

Só resta ler no cativeiro.

*

O espelho medieval e a ciência

 

 

      O medo do coronavírus – pois eu tenho medo – me fez retomar um grande livro: “O espelho distante – o terrível século XIV”, da historiadora Barbara Tuchman. Num dos capítulos, “o fim do mundo”, ela trata da “peste negra”, o flagelo que se abateu sobre a Europa dizimando populações. O relato é devastador. A epígrafe do livro, de John Dryden, prepara o nosso espírito: “Pois a humanidade é sempre a mesma e nada se perde na natureza, embora tudo se altere”. E volte com novas roupagens, formas, embalagens ou mutações. O que aconteceu?

“Em outubro de 1347, dois meses após a queda de Calais, navios mercantes genoveses chegaram ao porto de Messina, na Sicília, com homens mortos e agonizantes nos remos. Vinham do porto de Cafa (hoje Feodossia) no mar Negro, na Crimeia, onde os genoveses tinham um posto de comércio, ou feitoria. Os marinheiros doentes tinham estranhas inchações escuras, do tamanho de um ovo ou de uma maçã, nas axilas e virilhas, que purgavam pus e sangue e eram acompanhadas de bolhas e manchas negras por todo corpo, provocadas por hemorragias internas. Sentiam muitas dores e morriam rapidamente cinco dias depois dos primeiros sintomas. Com a disseminação da doença, outros sintomas, como febre constante e catarro sangrento, surgiram em lugar das inchações ou bubões. As vítimas tossiam, suavam muito e morriam ainda mais depressa, dentro de três dias ou menos, por vezes em 24 horas. Nos dois casos, tudo o que saía do corpo – hálito, suor, sangue dos bubões e pulmões, urina sanguinolenta e excrementos enegrecidos pelo sangue – cheirava mal”. Poucas vezes se teve tanto medo durante tanto tempo.

Barbara Tuchman capturou a complexidade da época: “A depressão e o desespero acompanhavam os sintomas físicos e a ‘morte se estampava no rosto’. Essa doença era a peste bubônica, que se apresentava em duas formas, uma que atingia a corrente sanguínea, provocando ínguas e hemorragia interna, e que se disseminava pelo contato; e uma segunda forma, mais virulenta, pneumônica, que atingia os pulmões e era disseminada pela infecção respiratória. A presença das duas ao mesmo tempo provocou uma alta mortalidade e rapidez de contágio. Tão mortal era a enfermidade que se conheceram casos de pessoas irem dormir bem e morrerem antes de acordar, assim como de médicos contraindo a doença junto a um doente e morrendo à frente dele. Tão rápido era o contágio que para um médico francês, Simão de Covino, era como se uma pessoa enferma ‘pudesse contagiar todo o mundo’. A violência da peste parecia ainda mais terrível porque suas vítimas não conheciam prevenção nem remédio”. Só restava fugir para lugares isolados com água limpa.

Médicos vestiram roupas especiais e usaram varas de até 1m80cm para lancetar de longe os bubões das vítimas. O mal foi disseminado pelos mongóis. O rato preto tinha culpa no cartório? Pesquisas mais recentes afirmam que pulgas e piolhos humanos teriam espalhado a doença. A peste voltou outras vezes e sempre causou estrago. Era uma questão sanitária. O quadro descrito por Barbara Tuchman não pode ser mais assustador. Esse cenário abordado por muitos historiadores contou para a imagem que temos da Idade Média. O que mudou de lá para cá?

De maneira geral, as condições sanitárias melhoraram. Mas não sempre. O que realmente se alterou foi o conhecimento científico. A ciência, porém, nem sempre anda na frente. No caso dos vírus, corre atrás das suas mutações. Dado que a humanidade é sempre a mesma, a Franca mail da peste e entrou em guerra contra a Inglaterra. Os homens já não sabiam viver sem destruição. Pediam clemência aos céus, mas eram inclementes terrenos. Queriam viver para matar em nome do poder.

A última grande tragédia desse gênero foi a gripe espanhola de 1918, que nem espanhola era, tendo começado nos Estados Unidos da América. A Espanha ficou com o rótulo por não ter censurado as notícias, durante a Primeira Guerra Mundial, relativas ao vírus influenza e sua devastação. Ainda não se fechou a conta dos mortos, entre 50 milhões e 100 milhões no mundo. Em nossa memória recente temos nomes como AIDS, SARS, H1N1, Ebola. Viver é sempre muito perigoso.

Andei pelas ruas de Porto Alegre à noite. Vi bares cheios de jovens na maior pegação. A força do vitalismo não pode ser ignorada. O coronavírus mata mais os velhos e são eles que mais se preocupam com esse inimigo invisível. A humanidade é sempre a mesma: os jovens querem viver. Os velhos não querem morrer. Na peste negra, quarentenas rigorosas foram impostas. O que se aprende quando os fantasmas da Idade Média retornam? Essencialmente que a história não é uma marcha linear do pior para o melhor. Há progressos e regressões, saltos e quedas.

No auge da caminhada

Achei que era bravo,

Mostrei minhas armas ao vento

Caí soprado por uma brisa.

 


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