Djamila por ela mesma

Djamila por ela mesma

Cartas para a avó

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    Nenhuma mulher vende tantos livros quanto Djamila Ribeiro atualmente no Brasil. Em “Cartas para minha avó” (Cia. das Letras), a autora do “Pequeno manual antirracista”, best-seller absoluto dos últimos dois anos, conta a sua luta contra o preconceito. Negra e pobre, filha de um estivador e de uma dona de casa, cresceu num edifício de classe média branca, em Santos, num pequeno apartamento comprado pelo pai graças a uma loteria ganha num bolão com os amigos e a intermináveis prestações na Caixa Econômica Federal. Eles seriam sempre os “neguinhos da frente” para a vizinhança. Num estilo leve e fluente, Djamila narra tudo o que passou na escola e no trabalho.
    Quantas vezes ouviu a terrível expressão “nega fedida”? Adulta, casada, trabalhando numa empresa portuária, com uma filha, decidiu estudar filosofia em Guarulhos, a três horas e meia de casa. Foi preciso suportar descrédito, críticas, machismo. Se quando adolescente ouvia que os meninos bonitos não eram para ela, como estudante universitária teve de enfrentar perguntas condescendentes, maldosas, preconceituosas: por que não arranjava um “gringo” para se dar bem? Por que não ia ser modelo com o corpo que tinha? O que queria estudando filosofia? Por que não ficava em casa cuidando da filha?
    O relato de Djamila tem a força da autenticidade, da verdade crua, de uma carta para a avó lutadora da qual a neta sente falta: “Eu tinha vinte e três anos, queria namorar, sonhava e fantasiava com o amor. Mas também queria ver o mundo, ir para outros lugares, conhecer outras culturas. Queria visitar novas cidades, viajar mais de avião, me aventurar”. Contra muitos, contra um sistema de hierarquia social racista, Djamila conseguiu. Ela conta sobre a morte prematura da mãe, um ano depois a do pai, perdas duras em pouco tempo, sofrimentos e aprendizados. Não há autocomplacência: “De fato, minha mãe cozinhou, lavou e passou a vida toda. Seus dias eram trabalhar, seja cuidando da casa dos outros, seja cuidando da nossa casa. Depois de casar, em vez de cumprir as ordens do patrão, ela precisava realizar os desejos do meu pai”. A filha, porém, também falará das qualidades desse pai: “O Joaquim marido era um, o Joaquim pai era outro”. Quantos assim?
    Amparada em mulheres fortes e sábias, Djamila saltou os obstáculos de cada dia: “O racismo poderia ter feito com que eu desistisse de muitas coisas na minha vida, não foi fácil ser a única aluna negra na escola de inglês, a medalhista no campeonato de xadrez, eu poderia ter o conhecimento, mas não a coragem. E sendo mulher negra é preciso ter os dois”. Eis um livro simples em sua narrativa e tão forte que é difícil condensá-lo em poucas linhas. São tantas as experiências e advertências a considerar: “Por ter vivido assédios e tentativas de abuso na infância e adolescência, passei a ficar extremamente atenta ao entorno da minha filha, e percebi que as coisas não mudaram. Quanto ao racismo na escola, porém, as coisas haviam avançado um pouco”. Ainda tem, contudo, um bom caminho pela frente.

 


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