Dois ídolos

Dois ídolos

Luiz Gama e Antônio Bento

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    Aqui, do meu modesto lugar, admiro homens cujos passos ressoam na história do século XIX: Luiz Gama e Antônio Bento. Dois indivíduos muitos diferentes e muito parecidos. Ambos lutaram pela abolição da escravatura. O baiano Luiz Gama era filho de pai branco e de mãe negra, possivelmente Luiza Mahin, africana que fez parte da revolta dos Malês e da Sabinada. O pai vendeu o menino como escravo quando este tinha dez anos de idade. Sim, isso acontecia. Gama conseguiu se tornar livre novamente e virou um libertador de escravizados, como advogado autodidata, recorrendo à lei de abolição do tráfico de 1831, que considerava livres todos os negros contrabandeados para o Brasil depois dessa data. Consta que essa foi a primeira lei a não pegar entre nós, feita para inglês ver e parar de incomodar. Usada na justiça, diante de juízes altivos e independentes, teve efeito.
    O paulista Antônio Bento era branco e rico, filho de médico. Advogado de formação, tornou-se amigo de Gama em 1873. Usou o mesmo método para libertar escravizados. No momento mais crucial da luta abolicionista, criou os caifazes, ativistas que iam às fazendas ajudar na fuga dos cativos. Bento escondeu fugitivos nas suas propriedades e organizou grandes quilombos para dar guarida aos fugitivos, que, em certo momento, escaparam do jugo em massa. Muito religioso, via-se como um missionário da liberdade em nome dos mais sagrados valores. Editou o mais intrépido jornal abolicionista, “A Redempção”, que espinafrava a imprensa aristocrática, como “A Província de São Paulo”,
hoje “Estadão”, e recusava a língua portuguesa das elites escravistas.
    Gama morreu seis anos antes da abolição. Bento ainda viveu dez anos depois da Lei Áurea. Empenhou-se em arranjar emprego para muitos dos novos cidadãos, abandonados pelo Estado, junto a homens ricos que conhecia. Nenhuma política pública de integração fora prevista. Antes mesmo da abolição, Bento já conseguia que alguns senhores transformassem seus cativos em assalariados. Penso em Luiz Gama e em Antônio Bento e me emociono. De onde tiravam tanta coragem? Como foram capazes de correr tantos riscos? De que têmpera eram feitos esses bravos? Não sentiam medo? Não temiam perder o que tinham? Não. Lutavam por algo tão grande e justo que nada parecia abalar suas convicções.
    Eu podia falar também da minha admiração por outros heróis negros da luta abolicionista, como André Rebouças e José do Patrocínio (a meu ver o maior jornalista brasileiro de todos os tempos). Por que, de repente, estou falando desses personagens fabulosos? Estava folheando alguns livros e eles saltaram das páginas e começaram a puxar papo comigo. Cheguei a entabular uma conversa com Luiz Gama:
– É verdade que o senhor, ao longo da sua intensa carreira, libertou mais de 500 pessoas e nunca cobrou honorários?
– Ora, esse tipo de detalhe sobre dinheiro não tem importância.
    Nesses dias de solidão, retirado no meu canto, converso com homens do passado e tento aprender com eles. Para mim, a voz de Luiz Gama não tem preço: “Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo violências”. Bravo!

 


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