E o vento (não) levou

E o vento (não) levou

Registros, homenagens e releituras

publicidade

      Na verdade, trouxe de volta. A HBO Max retirou do seu catálogo o filme “E o vento levou”, adaptação do romance de Margaret Mitchell (prêmio Pulitzer de 1937, 30 milhões de exemplares vendidos), por Victor Fleming, ganhador de oito Oscar e campeão proporcional de bilheteria de todos os tempos. O clássico é acusado de racismo e de tratar a escravidão como o melhor dos mundos. A obra é livro de cabeceira da Ku Klux Klan. A decisão da HBO veio na esteira das derrubadas de estátuas de escravagistas e na onda do movimento “Vidas negras importam”. Tudo isso é o resultado da reação ao assassinato covarde do negro Georges Floyd por um policial branco nos Estados Unidos. A presidente da Câmara dos Representantes quer mandar para um museu as estátuas comprometedoras que pontificam na casa do povo.

      Derrubaram, na Inglaterra, a estátua de um “benfeitor” branco que tivera como esposa uma menina africana de 12 anos de idade. Cada época tem o direito de revisar homenagens. O passado depende do presente.  Cancelar livros e filmes é a mesma coisa? “Mein Kempf”, de Hitler, deveria continuar proibido? “E o vento levou” não deve mais estar à disposição de quem quiser ver o filme ou ler o livro? Por que não? Não se trata de homenagem. Não depende do aval de uma população. Uma empresa, contudo, por discordar do conteúdo pode não querer oferecer o produto. Uma livraria não é obrigada a vender o livro de Hitler. As estátuas não deveriam ser depredadas, mas removidas para um museu dos rejeitados. Livros e filmes são documentos que precisam estar acessíveis em algum lugar. Nem todos, porém, têm direito à luz. Os chamados “panfletos” racistas do genial escritor Louis-Ferdinand Céline são proibidos na França. Uma coisa são suas obras-primas como “Viagem ao final da noite” e “Morte a crédito”, outra os seus panfletos.

      Acerto de contas com obras infames ou ameaça à liberdade de expressão? Quem julga? As estátuas estão sendo julgadas por multidões nas ruas. “E o vento levou” saiu de catálogo por decisão de uma empresa preocupada com a sensibilidade dos seus consumidores. O vento da história sempre traz de volta o que não foi bem resolvido. A Suíça discute compensação às vítimas da escravidão. O país teve grandes traficantes de escravos. Um deles, David de Pury, tem praça e estátua em Lausanne. A Europa a possibilidade de devolução de obras artísticas saqueadas pelo mundo. Se acontecer, o Louvre ficará mais pobre. Se um país pode ser criado como compensação por perdas de mais de dois mil anos atrás, com toda razão, por que outras perdas não deveriam ser compensadas? O livro da história está sempre aberto para releituras.

      E para ser reescrito. O passado é uma construção do presente. Durante décadas a agora chamada “branquitude” prometeu que tudo se resolveria por força de um universalismo abstrato presente em constituições e pela meritocracia. Graças ao darwinismo social e à mão invisível da justiça tudo se ajustaria, as discriminações desapareceriam e todos viveram felizes para sempre. O vento levou...


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895