Edgar Morin e os jardins do conhecimento

Edgar Morin e os jardins do conhecimento

Pensador faz cem anos hoje

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      Nos últimos dias eu me liberei para citar fartamente um francês: Edgar Morin. Ele completa cem anos de idade hoje. Sou um contador de história modesto, mas persistente. Quanto mais o tempo passa, mais me lembro do que vivi com alegria. Uma vez, em Paris, Morin me pediu para ir à casa dele. Queria me dar uma missão. Como era um dia de primavera, fui a pé de Montparnasse até o Marais. A cidade estava luminosa, dourada pelo sol. Eu me sentia leve, livre e abençoado. Tinha a Cláudia, fazia doutorado na Sorbonne, era correspondente internacional de um jornal brasileiro, viajava muito e recebia chamados de Morin, mestre da complexidade, para “missões” culturais.

      Imaginei que se tratasse de apressar o sequestro de Maitê Proença, brincadeira que alimentávamos desde o nosso primeiro encontro. Chegamos a falar do assunto. A missão, contudo, era outra. Ele queria que eu participasse do Jardins do Conhecimento. Isso mesmo. Era um projeto sobre a trajetória dele que seria desenvolvido por vários pesquisadores da sua obra e da sua vida. Foi aí que ele começou a falar de jardins. Comentou a obra de Hieronymus Bosch como se estivesse na frente dela no Museu do Prado, em Madri. Depois, quase sem transição, passou a falar dos Jardim das Cerejeiras, de Tchekhov. Por fim, referiu-se ao Jardim das Delícias, ou Jardim Perfumado, de Xeque Nefzaui, obra do começo do século XVI, que eu não conhecia. De volta para casa, corri a consultar o Petit Robert. Na manhã seguinte, fui para a biblioteca do bairro em busca de subsídios e cores. Além disso, não bastasse esse exemplo biográfico silencioso, queria me oferecer um lugar gratuito no Jardim das Delícias. Por que não?

      Esqueci praticamente tudo o que ele disse, pois estava encantado demais para me concentrar. Eu tinha então os deslumbramentos dos jovens que acreditam na força das palavras e na sabedoria dos mestres. Da vida eu só queria livros, sol, amor e arte. Eu achava que era pouco. Hoje sei o quanto era vasto o programa que me fascinava. O “velho Edgar” sorria e parecia dizer: “Vai, tu consegues”. Havia sido resistente ao nazismo – isso me fazia rodar a cabeça –, brigara com o Partido Comunista Francês, amava a poesia e escrevia para sonhar. Eu sonhava em escrever. Estava no auge das ilusões que nunca perderia.

      Foi uma hora deliciosa. A missão era real. O preâmbulo à apresentação da tarefa foi o mais vertiginoso que já ouvi. Tudo isso com o sol lambendo a cortina e a gata Herminette subindo nos ombros daquele sábio que me parecia, nos meus magros 32 anos de idade, idoso. Ele só tinha 73 anos. Depois de me explicar o que desejava, disse que precisava sair. Perguntou se eu podia acompanhá-lo por alguns minutos. Aceitei. A tarde já declinava. Os tons eram perfeitos para algum quadro impressionista ou para uma foto que eu não tinha como tirar. Andamos algumas quadras lado a lado. Morin sorria para muitas pessoas. Por fim, ele parou e me disse com seu sorriso de menino travesso:

– Au revoir, Jérémie.

– Onde vai? – ousei perguntar.

– Comprar vinho, azeite e olivas.

      Feliz aniversário, Edgar. Cem anos esta noite.

 


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