Em abstrato, quem foge tem culpa?

Em abstrato, quem foge tem culpa?

Dúvidas sobre práticas concretas

publicidade

 

      Houve um tempo em que pensadores colocavam o conceito acima do concreto. Era, claro, uma questão conceitual. A realidade empírica estaria contida em conceitos explicativos abstratos. Passou? Restou em alguns espíritos a obsessão pela teoria capaz de tudo explicar. O racismo seria corrigido não por medidas concretas, mas por força de um universalismo abstrato, a força da meritocracia mesmo entre competidores em condições desiguais de disputa. Chega de concretude. Façamos só perguntas em abstrato: se alguém foge é por ter culpa no cartório? Se alguém dá cobertura para uma fuga, torna-se cúmplice?

      Quem pratica comprovadamente “rachadinha” pode, sem que isso constitua um crime, ser chamado de ladrão? Quem racha dinheiro público é corrupto? Que minimiza, relativa ou nega por ideologia o papel de um político em caso comprovado de “rachadinha” tem corrupto de estimação? Se recebo em minha casa alguém que deu endereço falso, na condição de “averiguado” em investigação, estou cometendo irregularidade? Se advogo para uma pessoa e dou abrigo na minha casa a alguém que pode comprometer, se for encontrado, meu cliente, estou agindo bem, obstruindo a justiça ou dificultando a revelação de alguma verdade? Cabe a um assessor parlamentar pagar contas do chefe com dinheiro vivo, sem rastros da origem do recurso, inclusive mensalidades escolares de filhos do representante eleito do povo? O que dizer?

      Se um miliciano deposita dinheiro na conta de um assessor parlamentar, se o referido assessor, que recolhe parte dos salários dos colegas, paga contas do chefe, se o chefe não saca nem transfere dinheiro para que o subordinado realize os tais pagamentos, o que se deve pensar? É lícito e lógico imaginar que os pagamentos das contas do chefe foram feitos com o dinheiro arrecadado dos seus funcionários ou até com o montante vindo do miliciano? Ou fazer esse tipo de associação é pura maldade política para atingir a honra de um homem? Se uma pessoa recebe sem jamais comparecer a local de trabalho e um dia é convocada a assinar o ponto atrasado para que não a acusem de ser fantasma, isso constitui prova de que o lençol é branco e a pessoa faz “uhhh!!!” quando assina o livro de presenças onde só havia vazio?

      Se tudo indica que houve “rachadinha”, pois as coisas têm jeito, forma e evidências de “rachadinha”, achar que não aconteceu equivale a crer em Papai Noel e coelhinho da Páscoa ou a sustentar que não houve mensalão? Se emprego mãe e mulher de miliciano, a quem condecoro com medalha, e o cara bota dinheiro na conta do meu assessor, que paga as minhas contas pessoais e arrecada parte dos salários dos meus empregados, pagos com dinheiro público, posso dizer que nada sei dessas operações e que tudo está na mais perfeita normalidade ou fico na obrigação de apresentar explicações consistentes à opinião pública? Se nada temo, nada fiz, devo abrir meus sigilos e clamar por esclarecimentos ou entrar com uma dúzia de recursos para barrar as investigações? Enfim, abstratamente falando, são minhas dúvidas.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895