Entrevista com Ângela Maria

Entrevista com Ângela Maria

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Em 2015, entrevistei Ângela Maria para o Caderno de Sábado. Eu era muito fã dela.

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Batizada Abelim Maria da Cunha por uma família religiosa e humilde, nascida em 13 de maio de 1929, na pequena cidade de Conceição de Macabu, no Rio de Janeiro, ela virou estrela com o nome de Ângela Maria. Há 65 anos ininterruptos, brilha com a sua voz majestosa e um repertório feito de agora clássicos brasileiros. Perdeu a conta das vezes em que se apresentou em Porto Alegre. Na véspera de embarcar para mais um show na capital gaúcha, concedeu esta entrevista para o Caderno de Sábado. Esbanjando alegria, muito de bem com a vida, uma semana antes de completar 86 anos de idade, deu asas às lembranças, revisitou parte do passado, fez uma avaliação do presente da música brasileira e até cantou no ouvido do encantado entrevistador, por telefone, o seu primeiro grande sucesso: “Não tenho você”. Ângela Maria é uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos.

Caderno de Sábado – A sua carreira começou em 1950, época em que rádio ainda dominava e o gaúcho Getúlio Vargas voltava ao poder. Chegou a conhecê-lo? De que maneira ele marcou a sua vida?

Ângela Maria – Encontrei Getúlio Vargas uma única vez. Lembro como se fosse hoje. Foi numa festa na casa do diretor da Rádio Nacional, Victor Costa. Era uma virada de ano. Tinha muita gente. Alegria e descontração total. Getúlio parecia muito satisfeito. Sorria muito. Eu estava começando a minha carreira depois de muito esforço. Tinha apenas dois anos de estrada. Achei até estranho ter sido convidada. À meia-noite, os artistas fizeram fila para cumprimentar Getúlio. Fiquei por último, a menorzinha. Quando, finalmente, cheguei perto dele, Getúlio me disse: “Ah, Sapoti, que alegria te ver”. Fiquei surpresa. Não entendi bem. Amarrei a cara. Ele percebeu que eu não tinha gostado. Quis saber qual era o problema, se eu não estava gostando de alguma coisa. Aí eu falei: “Como vou gostar, o senhor está me chamando de jabuti?” Getúlio abriu seu sorriso: “Não, não é Jabuti, menina. É sapoti. Uma fruta doce como o mel e como a tua voz”. Ali, naquela hora, ele me batizou de Sapoti. Pegou. Quando fui à Europa, os jornais já me chamavam assim. Fiquei Sapoti para sempre.

Caderno de Sábado – Provou a fruta, comeu sapoti algum dia?

Ângela Maria – Provei tempos depois. Realmente é muito doce. Assim que Getúlio Vargas explicou isso, desamarrei a cara. Fiquei muito feliz. Eu mal estava começando, cantava, mas ainda trabalhava, e ele já me conhecia. Não tem como esquecer. Ganhei um apelido e alegria.

Caderno de Sábado – Qual era o seu primeiro e grande sucesso dessa época do encontro com o presidente Getúlio Vargas?

Ângela Maria – Era “Não tenho você”. Era assim (canta deliciada): “Você vive ao meu lado/E eu não tenho você/Existe algo errado/Porém não sei o que/Choramos sempre juntos/Os nossos dissabores/Vivemos lamentando/Essa ausência de amores/Você vive ao meu lado/E eu não tenho você...” Foi um grande sucesso. Um marco na minha carreira.

Caderno de Sábado – O seu começo foi difícil. Precisou vencer a resistência da família e encontrar espaço. Teve muita ajuda?

Ângela Maria – Demorei a decolar. Não foi fácil. A minha família achava que todo mundo no meio artístico era depravado. Achava, na verdade, que o meio artístico era uma depravação só. Consegui, com o passar do tempo, provar que meus pais estavam errados. Iniciei minha vida trabalhando duro. Fui operária numa fábrica de lâmpadas e numa fábrica de tecidos. Não recebi tudo de mão beijada, mas, felizmente, encontrei pessoas que me ajudaram a abrir caminho. Eu cantava clássicos, que, no Brasil, quase ninguém ouve, e queria cantar música popular. O Erasmo Silva, um divulgador da Odeon, fez o que pôde para me criar oportunidades. O Ciro Monteiro me arranjou um repertório próprio. Isso foi muito importante. Ganhei a minha identidade.

Caderno de Sábado – Nesses 65 anos da sua  bem-sucedida carreira, o Brasil mudou, o mundo tornou-se muito diferente do que era e a música passou por revoluções. No caso brasileiro, está melhor ou pior?

Ângela Maria – Ah, essa pergunta é difícil de responder. Vou tentar. Ficou diferente, com certeza. Pior ou melhor? Aí já é bem mais complicado. Vou dizer: acho que ficou pior. A música da minha juventude era outra coisa. Era música de ar, de voz e de grandes letras. Era música com muita poesia. Os grande compositores – Vinícius de Morais, Dorival Caymmi, Ari Barroso e tantos outros gênios – já foram para o andar de cima. Hoje, não tem mais isso, não tem mais essa fartura de gente compondo maravilhas. Os clássicos que temos foram feitos por esses compositores do passado. É por isso que no meu novo disco, “Ângela Maria à vontade”, canto só grandes nomes.

Caderno de Sábado – O que mudou mais profundamente?

Ângela Maria – O romantismo acabou. Nos clássicos, sempre tem início, meio e fim. Cada canção é uma história feita de musicalidade e de poesia. Agora, qualquer letra, com qualquer música, é disco de ouro, disco de platina, uma coisa louca. Há uma crise de criatividade na música brasileira. Essa é a grande verdade. Escuto na televisão músicas que não me encantam. Claro que nem tudo é ruim. Sempre se aproveita alguma coisa. Mas o romantismo se foi. E com ele a poesia.

Caderno de Sábado – O que é ruim na tevê, o sertanejo universitário?

Ângela Maria – Gosto de sertanejo, aquele que chamam de raiz. Esse eu gosto. Entre os jovens, tem alguns que são bons. Não é, de toda maneira, o meu gênero predileto. Eu gosto de canções que botam a alma na boca. Os grandes compositores de outra época faziam isso: Jair Amorim, Evaldo Gouveia, Patané, Vicente Paiva, Caymmi, Ari e o maravilhoso gaúcho, que foi meu amigo, um gênio, Lupicínio Rodrigues. No meu novo show, canto de Lupicínio a belíssima “Nunca”.

Caderno de Sábado – As grandes vozes ainda têm vez?

Ângela Maria – Para mim, continua sendo o essencial. Agora, contudo, cantar virou outra coisa: é só sussurrar. Graças à tecnologia, ficou muito fácil ser cantor. A máquina, nas gravadoras, corrige tudo. Tem máquina de afinação. Ela dá o tom para o cantor e elimina a sua desafinação. A máquina ensina tudo o que cantor precisa fazer.

Caderno de Sábado – Quando essa virada começou?

Ângela Maria – Acho que foi na época da Bossa Nova que tudo começou a mudar. Eu gostava de João Gilberto e dos cantores da Bossa Nova. Mas, cá entre nós, não é cantar de fato. É declamação. Quase declamação. Não é comigo. Gosto de soltar a voz. Comecei imitando a Dalva de Oliveira. Convivi com Emilinha Borba e Marlene. Só quem tinha voz é que cantava. Nunca competi com ninguém. Admirava e era admirada. Foi assim também com Elis Regina, Alcione, Maria Bethânia, Gal e tantas outras grandes cantoras. Cantar é soltar a voz. Os maiores cantores brasileiros são Cauby Peixoto, Aguinaldo Timóteo, Aguinaldo Rayol e um nome novo a ser anotado, apadrinhado por mim, Márcio Gomes.

Caderno de Sábado – A sua vida pessoal tem sido atribulada: vários casamentos, empresários que a roubaram, conforme é de conhecimento público, a dor por não ter tido filhos e um casamento que já dura mais de três décadas com um homem trinta anos mais novo. Confere?

Ângela Maria – De empresários já não quero falar. Passou. Quanto a não ter filhos, claro que sofri. Qual mulher não quer ser mãe? Adotar não deu certo. Casamentos, tive alguns. Felizmente encontrei o homem da minha vida e estamos felizes juntos há 36 anos. Enfrentamos preconceito no começo por causa da nossa diferença de idade – eu tinha 51 e ele 18 –, mas depois todos tiveram de entrar na nossa. Quem tinha algum amor desse tipo escondido, saiu do armário. Ninguém mais pode falar hoje, até porque está uma bagunça. Eu não entendo mais coisa alguma. Ficou tudo muito estranho. Parece coisa de novela.

Caderno de Sábado – Depois de 65 anos de carreira e de 120 discos, tendo cantado inclusive em grego, dá para dizer sem precisar pensar muito quais foram as músicas mais bonitas que cantou e gravou?

Ângela Maria – Gosto de todas as músicas da minha carreira, mas “Gente humilde” e “Tango pra Tereza” são especiais. Se não são as mais bonitas, com certeza estão entre elas. Acho que são elas, sim.

Caderno de Sábado – A tecnologia mudou, o país também, a indústria fonográfica passou por uma revolução com a internet. Fazer show é um prazer ou uma necessidade desses novos de abalo ao direito autoral?

Ângela Maria – Faço show por que amo cantar. Se eu parar, podem encomendar o caixão. Eu me adapto às coisas. Não fico brigando com as novidades. Tenho o meu perfil no facebook. Interajo com os fãs. Mesmo assim, não me sinto atingida pelas grandes mudanças. A televisão não me convida para nada. É feita para jovens. É tudo muito moderno. Não que meu público não se renove, mas a televisão não quer saber. Tenho saudades dos programas de antes, com auditórios lotados, Paulo Gracindo, César de Alencar, quando grandes artistas eram valorizados.

Caderno de Sábado – As canções de antes não eram tristes demais?

Ângela Maria – Era tristes, falavam de amores perdidos, de separações, de romantismo. Eram tristes e bonitas. As músicas realmente lindas ficaram para trás. Eram as músicas cantadas por Elizete Cardoso, Altemar Dutra, Benito de Paula e tantos outros.

Caderno de Sábado – O seu público continua fiel. Missão cumprida?

Ângela Maria – Espero que por muito tempo ainda. A minha intenção inicial era ser muito popular, ganhar muito dinheiro e dar conforto aos meus pais. Consegui. Agradeço a Deus todos dias pelo que me deu.

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