Entrevistas marcantes: Eribon e a homofobia

Entrevistas marcantes: Eribon e a homofobia

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Eribon, a questão gay como espelho da sociedade

Filósofo e especialista em história das ideias, o francês Didier Eribon é um intelectual de prestígio internacional. Professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, transita com desenvoltura pelas principais universidades dos Estados Unidos. Autor de uma importante biografia de Michel Foucault, publicada em 1989, traduzida em 17 línguas, ficou também conhecido por seus livros de entrevistas com Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss e Ernst Gombrich. Com “Reflexões sobre a questão gay (Fayard, 1999), ele retomou o caminho da polêmica e agitou a imprensa cultural francesa. Pilotando um texto simples e claro, mas extremamente rico em fontes literárias de primeira qualidade, como Marcel Proust e André Gide, sem contar o imenso aparato teórico devedor de Michel Foucault e, em termos mais recentes, de Pierre Bourdieu, Eribon revisita os preconceitos deste fim de século contra o homossexualismo e mostra como o Ocidente constrói o estigma para definir identidades sociais inferiorizadas e excluídas. Militante pelos direitos dos homossexuais, o autor crê na resistência e vê na arte e nas grandes cidades os espaços privilegiados para o exercício de uma mínima liberdade sexual. Sem ilusões, tampouco sem desencanto, revela os mecanismos conservadores de defesa dos privilégios dos homens, dos brancos e dos heterossexuais. Nas campanhas que, pela derrisão ou pelo desprezo, atacam o dito “politicamente correto”, vê o mais recente avatar do terrível medo da igualdade de direitos sexuais. Analista de um tempo pretensamente sem tabus, Eribon denuncia a homofobia contemporânea. As muitas mudanças ainda não transformaram o substrato de um imaginário refratário ao homossexualismo. Curioso é fato de que o livro de Eribon não se impõe como um manifesto. O poder intelectual e analítico supera qualquer simpatia, de resto assumida, pelos movimentos homossexuais. Nesta entrevista que fiz para a Folha de S. Paulo, Didier Eribon exercita o seu passatempo predileto: dar nome aos bois.

JMS — O senhor vem de publicar, na França, um livro instigante e provocador, Reflexões sobre a questão gay, cujo título faz referência a Jean-Paul Sartre. Trata-se de dar um estatuto filosófico ao tema da homossexualidade?

Didier Eribon — Ao escolher esse título, que faz evidentemente referência às Reflexões sobre a questão judaica, de Jean-Paul Sartre, quis, claro, afirmar que se pode e se deve produzir uma reflexão teórica e filosófica sobre a homossexualidade. Colocar a homossexualidade no registro da análise intelectual e não ficar nas habituais discussões polêmicas que irrompem de maneira um tanto irracional desde o momento em que se toca no assunto.


Mas quis também me inspirar na tese desenvolvida por Sartre nesse pequeno livro de 1946: é a sociedade antissemita, escreve ele, que forja o ser judeu, e este não escolha, a não ser aceitar o que é (o que Sartre chama de “autenticidade”) ou então de fugir ao que é na vergonha ou na negação de si mesmo (o que Sartre chama de “inautenticidade”). Parece-me que é a mesma coisa para os gays: a ordem social determina ao homossexual um status inferiorizado, o que determina em profundidade a personalidade e mesmo a identidade dos indivíduos assim designados. E não há escolha. Deve-se aceitar e reapropriar-se dessa identidade ou então vivê-la na vergonha e na dissimulação. No fundo, o conceito sartreano de autenticidade é bastante análogo ao de “orgulho”: pride.


— O seu livro, bastante engajado no combate legítimo aos preconceitos, foi lançado pouco antes do atentado, em Londres, contra um pub gay. O Ocidente chega ao final deste século atolado na homofobia, apesar da aparente evolução dos costumes?


Eribon — Creio que muitas coisas mudaram ao longos dos últimos anos, graças ao surgimento, em escala internacional, de um movimento gay e lésbico que adotou múltiplas formas. Mas isso não fez, evidentemente, regredir a homofobia. Talvez o contrário tenha acontecido: vê-se bem, historicamente, que cada grande momento de afirmação homossexual e de reivindicação do direito à homossexualidade provocou uma reação homofóbica. Basta pensar em Oscar Wilde e na repressão da qual foi vítima. Ou pensar na recepção ao livro de Gide, Corydon. A violência resultante da publicação desse livrinho, que nos parece hoje tão convencional, é simplesmente assustadora. A mesma violência pode ser encontrada por toda parte quando se trata da questão do reconhecimento jurídico dos casamentos entre pessoas de mesmo sexo.


— Para muitos analistas, os Estados Unidos, em nome do politicamente correto, estão vivendo uma caça às bruxas ao avesso, através da qual as minorias se transformariam em juízes implacáveis dos seus opressores. O senhor conhece profundamente a literatura norte-americana sobre o assunto de que trata. Há mais liberdade sexual (homossexual) nos Estados Unidos do que na Europa?


Eribon — Sempre que uma minoria reivindica direitos, desde que um movimento tenta mexer em certas coisas, os guardiães da ordem social mobilizam-se para opor-se às transformações e ao progresso. E um dos grandes temas discursivos dessa mobilização conservadora consiste em afirmar que em breve as minorias imporão a sua ditadura. Ainda aí é possível encontrar tudo isso na história: quando Gide publica Corydon, escritores conservadores revoltam-se questionando: será que ainda se tem o direito de ser heterossexual? Como se afirmar o direito à homossexualidade significasse impedir os heterossexuais de ser o que são. Trata-se da maneira pela qual os dominantes sempre reafirmam os próprios privilégios. Vale lembrar, por exemplo, que foi a direita conservadora americana que forjou a expressão “politicamente correto” para combater e denunciar os movimentos de afirmação dos direitos das minorias. Era uma campanha de difamação contra os movimentos feminista, gay e lésbico, étnicos, etc. Essa campanha teve pleno sucesso, pois aparentava defender o bom senso democrático contra os pretensos excessos de movimentos que só pretendiam derrubar as hierarquias implícitas nos discursos, na cultura, no saber, na política, garantindo e mantendo os privilégios dos homens, brancos e heterossexuais.


— O seu belo livro bebe muito nas fontes literárias, por exemplo, em Marcel Proust, e tem a marca, em ciências humanas, de Michel Foucault e de Pierre Bourdieu. O senhor cita várias vezes A Dominação masculina, onde se encontra uma visão pouco otimista do progresso da liberação das mulheres, tendo sido criticada até mesmo por muitas feministas. A revolução sexual fracassou?


Eribon — Não. A herança dos anos 60 e 70 é bastante considerável e deve-se defendê-la a qualquer preço contra todas as tentativas de retorno às situações anteriores. Mas o que surpreende, e Bourdieu tem razão em salientar isso, é o fato de que todas essas transformações, que afetaram a situação das mulheres, dos gays e das lésbicas, ao menos nas sociedades ocidentais, não alteraram, ao fim e ao cabo, a estrutura mesma da dominação e da opressão. Devemos, portanto, refletir não somente sobre o que mudou, mas também analisar as permanências, as invariantes, e tentar ver, como faz Bourdieu a respeito das mulheres, quais são as instituições que operam para perpetuar a ordem social e a ordem sexual: Igreja, escola, mundo do trabalho, ideologias políticas, etc.


— O senhor mostra, em seu livro, como a injúria serve, muito cedo na vida de alguém, para estigmatizar irrecuperavelmente. As cidades aparecem, então, como o lugar possível da liberação comportamental, onde os estigmatizados podem encontrar espaço para existir. O que é ser homossexual numa época em que todos os interditos, em princípio, teriam desabado?


Eribon — Não é possível apresentar uma definição de homossexual, pois existem mil maneiras de ser homossexual hoje. Certo, porém, é que a sociedade define um lugar estigmatizado para os homossexuais e, por causa disso, eles são assim definidos coletivamente, seja qual for a maneira através da qual cada indivíduo pensa — aceita ou recusa — a sua relação com tal coletivo. Essa definição coletiva parece-me, com efeito, estar simbolizada pela injúria que atinge os “bichas” ou as “sapatões”. Cada gay ou lésbica pode ser vítima da injúria, na rua, no local de trabalho, em cada momento da vida. Mas essa injúria aparece também sob a forma de caricatura nos jornais, na televisão, no cinema. Tudo isso forma o que chamei de um “modo de injúrias”, responsável pela estruturação da relação do homossexual com os outros e consigo mesmo. É essa subjetividade insultada, essa identidade inferiorizada, que se deve superar pela afirmação de si, através da reinvenção da própria personalidade, e da vida, num gesto pessoal e coletivo de afastamento das normas de submissão.


— Na França, em 1998, muito se discutiu um projeto de lei para regularizar a situação dos casais de homossexuais. A direita viu nisso uma casamento “bis”. A esquerda tentou mostrar que não se tratava disso. O senhor acredita que se deve ter a coragem de votar pelo direito ao casamento de homossexuais nos mesmos moldes e com os mesmos direitos dos casamentos heterossexuais? Há quem diga que os homossexuais lutam para ter acesso a uma instituição decadente.


Eribon — A direita opôs-se aos projetos de reconhecimento legal de casais de mesmo sexo. A esquerda tentou limitar esse reconhecimento a alguns direitos simples que não acarretam o reconhecimento simbólico e social do casal de mesmo sexo. São duas versões, diferentes, claro, mas ainda assim duas versões, da ideologia da homofobia: nos dois casos, trata-se de manter os homossexuais numa situação de inferioridade jurídica e social. Por isso me parece fundamental lutar pela igualdade total, com direito ao casamento, à adoção de crianças, etc. Mas, obviamente, reivindicar um direito, lutar pela igualdade de direitos, não significa pregar para os homossexuais o casamento como modo de vida obrigatório. Os gays e as lésbicas inventaram outros modos de vida, outras formas de relação, e não se trata de querer “normalizá-los” reivindicando o direito ao casamento. A questão é de direito. Nada mais. Eu não tenho vontade de casar, mas conheço inúmeros casais que gostariam de fazê-lo. Acho insuportável que sejam impedidos. Existem tantos heterossexuais que não casados e não têm vontade de casar. Isso não lhes tira o direito de fazê-lo se vierem a desejá-lo. Precisa-se alcançar a mesma situação para os homossexuais.


— Com o caso Oscar Wilde o senhor aborda a questão das máscaras, mas também trata da arte que, como as cidades, serve de “refúgio” aos estigmatizados. A literatura (Gide, Wilde, Proust, Isherwood, etc.) desempenharam papel importante para a mudança do imaginário sexual contemporâneo?


Eribon — Fala-se da importância da invenção cultural em dois sentidos: há, por um lado, a cultura literária e intelectual e, por outro, a cultura popular. Por isso, tento estudar como escritores e acadêmicos, entre outros, buscaram dar existência a uma palavra homossexual através de livros, apesar das interdições, dos tabus, da repressão exercida contra eles. Com frequência, tiveram de dissimular o discurso, utilizando “máscaras”, “códigos”. Cada autor tentou beber nas fontes precedentes. Oscar Wilde buscou apoio nos seus mestres, os helenistas de Oxford; Gide apoiou-se em Wilde; e sabe-se que Gide teve enorme influência posterior. Genet, Barthes e Foucault, por exemplo, foram bastante marcados por Gide. E nós somos um pouco os herdeiros de toda essa história.


Mas essa história intelectual só pôde existir por ter acontecido também uma história mais concreta: os homossexuais fizeram existir, nas grandes cidades, e isso já desde de muito tempo, o que se pode chamar de “mundo gay”, constituído de lugares de encontro, de bares, de restaurantes. Essa interação entre os modos de vida gay e a cultura de elite é que me interessou, ainda mais que ela me parece ainda mais forte hoje.


— Como ultrapassar a situação atual de exclusão do homossexual. Pode-se sonhar com uma “utopia sexual”?


Eribon — Não, não creio de jeito nenhum que estejamos nos dirigindo para uma sociedade melhor na qual a opressão exercida contra os homossexuais desapareça. Mas acredito que é possível construir espaços políticos, culturais e sociais de resistência a essa opressão. Não creio em utopia, mas sim em resistência.



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